Topo

Herdeiras de Glória Maria: 'Ela abriu caminhos', diz grupo de jornalistas

Gloria Maria faleceu na última quinta-feira (2) - Divulgação/Globo
Gloria Maria faleceu na última quinta-feira (2) Imagem: Divulgação/Globo

Paula Rodrigues

de Ecoa, em São Paulo (SP)

04/02/2023 06h00

Cada um de nós carrega, cravada na memória, alguma cena de Glória Maria, que desde os anos 1970 era presença certa em programas jornalísticos da Globo. Pioneira, foi a primeira jornalista a aparecer ao vivo e a cores na TV brasileira. Entrevistou grandes celebridades como Michael Jackson, cobriu eventos históricos como a Guerra das Malvinas e as Olimpíadas, foi a primeira a flutuar em uma câmara de gravidade zero da Nasa e até fumou maconha na Jamaica.

Do outro lado da telinha, gerações de crianças negras cresceram observando Glória transformar medo em coragem, curiosidade em iniciativa e dedicação em um trabalho que se tornou referência para quem viria depois.

"Ela abriu caminhos para gente. Glória Maria foi pioneira não só na possibilidade de nos fazer sonhar com ocupar esse espaço na TV (uma coisa que não era muito comum na década de 1970 quando ela começou a carreira), como também de um jornalismo mais humano. Glória humanizou o jornalismo. O jeito de falar, de se comunicar, de brincar, trazendo questões sérias mas de uma forma leve, foi muito inovador," diz a repórter do Brasil de Fato Emilia Bizzotto.

Junto a outras quase 50 mulheres, Emília faz parte do grupo Herdeiras de Glória Maria, que reúne jornalistas negras que se inspiraram e ainda vão continuar tendo como referência o legado deixado pela jornalista global.

Herdeiras de Glória Maria: União negra em um jornalismo ainda muito branco

Era junho de 2022 quando Cris Guterres, jornalista da TV Cultura e colunista de Universa, teve a ideia de criar o grupo Herdeiras de Glória Maria. Para participar do grupo, só com convite. O que era a princípio apenas para jornalistas de televisão se expandiu para profissionais de outras áreas.

"É um grupo de acolhimento da categoria, sobretudo de jornalistas mulheres pretas, para nos fortalecer quanto profissionais e quanto pessoas. A gente sabe que os veículos midiáticos são conduzidos e pautados com um olhar muito branco, a gente sabe de todas as dificuldades que jornalistas negras enfrentam quando entram em grandes veículos de comunicação", explica Emília.

No grupo, são compartilhados os desejos, anseios e até as decepções e dificuldades que encontram no meio do caminho ao exercer a profissão. Não raro se celebram e comemoram as conquistas pessoais e profissionais de cada uma.

A troca de mensagens é diária e um encontro presencial acontece uma vez por mês para que possam trocar ideias e, principalmente, apoio. Mas até oportunidades de empregos já saíram de lá.

O mais bacana é que o Herdeiras de Glória Maria quebra com essa suposta competitividade entre pessoas negras, já que durante muito tempo só houve espaço para uma de nós em determinada posição. Hoje somos muitas, somos múltiplas, e seguiremos ocupando espaços de poder no meio da comunicação para ampliar vozes e abrir espaço para pautas importantes e urgentes. Laís Franklin Vieira, Editora digital da revista Vogue Brasil e membro do Herdeiras de Glória Maria

A perda de uma referência que agora vira ancestral

Glória Maria faleceu na última quinta-feira (2) por causa de um câncer de pulmão, com metástase no cérebro. Apesar de saberem dos problemas de saúde que a jornalista tinha, a notícia da perda pegou todas do grupo Herdeiras de Glória Maria desprevenidas, um "choque coletivo", como descrevem.

Personalidades, famosos, políticos e tantos outros, ao se lamentar pela perda, deixaram claro a dimensão que a pessoa e profissional tinha.

"Se hoje tem um Emicida, é porque antes existiu uma Glória Maria", escreveu o rapper paulistano nas redes sociais. As jornalistas do Herdeiras corroboram com a citação, ao considerarem que só estão onde estão hoje porque, na década de 1970, uma mulher negra de pele retinta ousou ocupar um espaço que sabia ter capacidade e merecimento de ocupar.

Dos muitos momentos históricos promovidos por Glória Maria, a lembrança de Laís vai para a última entrevista feita com a jornalista global:

"No Roda Viva, uma resposta ficou no meu coração. Me enxerguei em muitas das falas daquele papo, como: 'Sou uma abençoada. Não tenho problema com o tempo, a maturidade vem para todo mundo. Não me preocupo como vou me vestir, como vou me comportar. A minha vida é única e intransferível'. Glória é eterna e seu legado segue vivo em cada uma de nós."

A liberdade de Glória, que se permitiu e fez tudo que desejou fazer (exceto ir à Lua), inclusive, aparece constantemente entre as lembranças sobre a jornalista. Para muitos e muitas, Glória mostrou na tela da TV aberta que também era possível ter uma pessoa negra viajando para mais de 100 países, encabeçando grandes reportagens, entre tantos outros feitos que marcaram história do jornalismo brasileiro e a vida de outros negros e negras que começaram a sonhar por causa dela.

Uma marca da trajetória dela, não só de jornalista mas de vida, é essa verdade, essa leveza e essa defesa da liberdade acima de tudo, sendo mulher, sendo jornalista, sendo mãe, sendo mulher negra. Ela sempre vai ser uma referência. Vou sempre lembrar como uma forma de inspiração para colocar em prática o que ela era e representava na minha vida no meu cotidiano de jornalista e também de mãe e mulher preta. Emilia Bizzotto, repórter do Brasil de Fato e membro do Herdeiras de Glória Maria