O dia em que um caiaque indígena venceu uma caravela francesa com arte
Denilson Baniwa conheceu Daiara Tukano há cerca de dez anos, quando fundou a Radio Yandê, primeira web rádio indígena do país. Ela foi convidada para ser correspondente e acabou se tornando coordenadora. Hoje, os dois são nomes de destaque no meio artístico. Por serem da mesma região e pela relação carinhosa que desenvolveram, se chamam de primos.
Lembrando os vários momentos em que estiveram juntos nesse período, entre projetos e conversas, Denilson se diverte ao contar da viagem que fizeram a Bordeaux, na França, para participar do Festival Climax - evento cultural voltado para a questão climática.
Foi em 2019: a dupla resolveu fazer uma intervenção artística na réplica de uma caravela que havia na cidade. Bordeaux foi um dos portos europeus que participaram do tráfico escravista para as Américas. A atração contava com uma tripulação em trajes de época e cobrava 10 euros pela visitação.
"Primeiro a gente ficou em choque por ter uma parada assim e depois ficou chateado, 'que porra é essa?'", disse Denilson a Ecoa. "Eu e a Daiara somos muito ligados em toda a discussão sobre decolonização, reapropriação, ocupação de espaços. A gente tinha que fazer alguma coisa."
E fizeram: duas enormes faixas com a palavra "decolonize" (descolonizar). Uma foi colocada numa das principais ruas de Bordeaux. Para a segunda, os artistas planejaram uma ação "meio Greenpeace": alugaram caiaques para atravessar o rio e pendurar a faixa na caravela. "Deu certo em partes, a gente conseguiu colocar a faixa. Mas foi meio tenso porque a gente calculou mal e começou a subir a correnteza. A gente podia ter morrido lá!", contou Denilson.
Família de luta
Artista, professora, comunicadora e ativista, Daiara Tukano já nasceu na luta indígena. Eram os anos 1980, ainda durante a ditadura militar. A União das Nações Indígenas - articulada por Ailton Krenak, seu pai Álvaro Tukano e outros ícones do movimento - organizava nacionalmente as demandas que seriam levadas para a Assembleia Nacional Constituinte, que definiu a Constituição de 1988, conjunto de leis que rege o país ainda hoje.
Pequena, ela já se via em meio às reuniões do movimento indígena, que tinha se fortalecido na década anterior. Por conta do ativismo dos pais e das perseguições da ditadura, Daiara cresceu na cidade, longe do território do seu povo, no Alto Rio Negro, Amazonas.
"Falar da história das nossas famílias não é uma coisa simples, porque todos os povos têm passado por processos muito fortes de genocídio", disse a Ecoa.
Mas a distância não a impediu de mergulhar na cultura indígena para fazer arte. "Hori", seu nome do meio, significa miração (visão provocada pela ayahuasca) e desenho na língua Tukano, e o ritual tem um papel importante em sua produção artística, que ganhou espaço no Brasil e no exterior. Em 2020, ela pintou no centro de BH o maior mural feito por uma artista indígena no mundo.
Hoje, em meio ao luto por seu companheiro e também artista Jaider Esbell, do povo macuxi, Daiara sente uma desconfiança em relação ao mundo da arte dos brancos. Mas busca resgatar o encantamento pela vida. Ela assina a curadoria da exposição Nhe'e Porã: Memória e Transformação, que ocupa o Museu da Língua Portuguesa em São Paulo até abril de 2023.
'Se achar dono é coisa de branco'
Daiara desenha "desde que se entende por gente", pinta e gosta de cores. Estudou artes plásticas na Universidade de Brasília, mas seguiu um caminho diferente.
Comecei a ter oportunidade de aprender um pouco mais com meu pai em cerimônias, de sentar do lado dele noites e noites ouvindo as histórias da criação, do povo, sendo introduzida a esse conhecimento. Isso me abriu para essas percepções, mirações. Somos um povo ayahuasqueiro, Daiara Tukano.
Os movimentos e as cores dessas visões a impressionaram tanto que passaram a aparecer em seus desenhos e pinturas. Ela também estuda os grafismos do povo Tukano, que considera uma forma de escrita. "Temos um jeito de organizar estas formas de maneira a fazer composições e trazer narrativas dentro delas", disse.
Com raras exceções, Daiara não costuma planejar suas obras com antecedência. Elas simplesmente "surgem". Com isso, desafia a concepção de autoria individual da arte ocidental moderna:
"É uma imagem que me surpreende. Eu nunca sei o que vai sair, então é uma coisa que que nem me pertence, pertence à cultura do meu povo. É uma expressão do pensamento do meu povo, não me coloco como detentora da minha arte".
Por essa razão, várias de suas pinturas e desenhos não estão à venda - ela prefere deixá-las fora da lógica de mercado.
"Tem outras que eu topei levar para alguns espaços, fui para a Bienal de São Paulo animar uma discussão dentro desse mundo. Mas a expressão artística em si não é pessoal, ela parte de uma coisa coletiva muito profunda, que atravessa gerações desde a origem do nosso povo Yepá Mahsã. Como vou me colocar como dona daquilo? Essa postura de se achar dono é coisa de branco", afirmou.
"A melhor coisa que eu posso oferecer são essas cores: posso só ficar calada e compartilhar um olhar. Mas o mundo da arte do branco é muito cruel, muito cheio de armadilha. Acabou me levando para a pior experiência da minha vida, que foi a perda do meu companheiro. Estou com uma mágoa muito grande com essa arte, preferia ter ficado no meu canto sem mostrar nada pra ninguém. Para mim não é um espaço de segurança, de liberdade."
Daiara Tukano, artista e ativista
'Acredito que a gente ainda tem uma chance'
Assim como Daiara, Denilson Baniwa se desencantou com o mundo da arte nos últimos anos. "Ilusão minha, ilusão nossa de achar a arte seria um braço do movimento indígena, que a gente conseguiria abrir caminho para outros indígenas, tornar uma coisa comunitária", lamentou.
Mas não deixa de elogiar o trabalho da amiga: "Acho a Daiara genial por todo o movimento que ela faz. No trabalho dos hori, por exemplo, é uma generosidade como ela compartilha segredos Tukano com as pessoas, segredos sobre o universo, sobre as mirações".
Mesmo magoada, Daiara tem esperança no futuro. "Meu voto é que a gente possa reconstruir o encantamento pela vida, pela terra, pela natureza e recuperar nossa memória para não recair nos mesmos erros do passado. Acredito que a gente ainda tem uma chance", disse.
"No mundo de hoje é o suicídio que mais mata. O que mais mata é a tristeza, é o desencanto. Espero que a gente possa usar a arte, a cultura, nosso engajamento nas nossas comunidades para que isso possa florescer: trabalhar para que as próximas gerações tenham direito a nadar num rio, a comer uma fruta sem ter medo, a andar pelo mundo e ver os bichos de diferentes espécies, fruir dessa beleza que é a vida"
Daiara Tukano, artista e ativista
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.