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Com atos extremistas, EUA e Brasil podem ter guerra civil? Como impedir?

Em atos golpistas, bolsonaristas invadiram sede dos três Poderes em Brasília, no último domingo (8) - Wilton Junior/Estadão Conteúdo
Em atos golpistas, bolsonaristas invadiram sede dos três Poderes em Brasília, no último domingo (8) Imagem: Wilton Junior/Estadão Conteúdo

De Ecoa, em São Paulo (SP)

08/02/2023 06h00

A invasão da sede dos Três Poderes, ocorrida em 8 de janeiro em Brasília, tem sido comparada ao ataque de 2021 ao Capitólio dos Estados Unidos. Para a cientista política norte-americana Barbara Walter, os atos extremistas são sinais preocupantes de que uma guerra civil pode eclodir. Por sorte, Barbara também conhece uma ou duas dicas valiosas de como impedir que a violência escale —- dicas ela compartilhou com Ecoa nessa entrevista exclusiva.

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A cientista política norte-americana Barbara Walter
Imagem: Debora Cartwright/Divulgação

Estudiosa de guerras civis e violência política desde os anos 1990, Barbara Walter acompanhou os atos golpistas nos Estados Unidos e no Brasil com apreensão, mas sem surpresa.

Ela fazia parte da Força Tarefa de Instabilidade Política, grupo formado por acadêmicos e analistas de dados a pedido do governo dos EUA, que vinha coletando informações sobre guerras civis no mundo todo na tentativa de prever cenários de instabilidade. Na última década, a cientista política começou a identificar alguns desses sinais de alerta nos Estados Unidos.

Com base em evidências reunidas ao longo de décadas sobre o aumento do extremismo no mundo, Walter publicou em 2022 o livro "Como as guerras civis começam - e como impedi-las". Ele entrou para a lista de best-sellers do New York Times e também foi lançado no Brasil no ano passado.

Walter falou a Ecoa sobre o cenário político no Brasil e nos EUA e quais ações cidadãos e governos podem colocar em prática para prevenir uma guerra civil: "Sabemos os fatores de risco. Isso já é muita coisa, nos dá tempo. Sabemos o que tem que ser feito", disse. A seguir leia os melhores trechos da entrevista

Democracia parcial e partidos baseados em identidade

"O fator mais importante [para o início de uma guerra civil hoje] é o que chamamos de anocracia - um termo sofisticado para democracia parcial. São governos que não são totalmente democráticos nem totalmente autocráticos, mas algo entre os dois. Pode haver uma situação em que, por exemplo, há eleições livres e justas, os cidadãos votam e tudo ocorre sem problemas, mas quem ganha tem muito poucas restrições em relação ao que pode fazer. Isso não é muito democrático.

O segundo fator é, nesses países onde há democracias parciais, se os partidos políticos se organizaram em torno da raça, religião e/ou etnia em vez de ideologia política. Os cidadãos não se filiam a um partido por ser conservadores, liberais, comunistas ou capitalistas, mas por ser brancos, negros, cristãos ou muçulmanos. Essa combinação de democracia parcial e partidos baseados em identidade é mais prevalente nos países que enfrentaram uma guerra civil nos últimos 30 anos."

Grupos que estão perdendo poder iniciam o conflito

"Uma das coisas que sabemos pelos dados é que quem tende a iniciar essas guerras de base étnica não são aqueles que a maioria suspeita, os grupos mais pobres ou mais fortemente discriminados da sociedade. A realidade é que esses grupos não têm como fazer isso - estão simplesmente lutando para sobreviver e não têm tempo, energia ou recursos para organizar uma rebelião. Além disso, o governo costuma observá-los com bastante cuidado e reprimi-los se saem da linha.

Quem tende a iniciar essas guerras civis são grupos que já foram politicamente dominantes e estão em declínio, que olham para o futuro e veem que estão perdendo poder - econômico também -, frequentemente por causa de mudanças demográficas. Aqui nos Estados Unidos são os homens brancos e cristãos. Eles estiveram no poder desde a origem do país e desfrutaram de privilégios que nenhum outro grupo teve.

O que vimos aqui em 6 de janeiro [de 2021] foi que a multidão que atacou o Capitólio era predominantemente branca e masculina. A forma que marcharam até lá, gravando vídeos de si mesmos -- eles não estavam se escondendo, não achavam que o que estavam fazendo era crime, mas sim um direito, que estavam sendo patriotas. E você vê elementos disso no Brasil.
O Brasil acabou de passar por essa transição e [o ex-presidente] Bolsonaro (PL) jogou com muita inteligência com os medos dos brancos de estarem perdendo poder.

Você vê que no 8 de janeiro havia em parte essa noção de que 'Bolsonaro é nosso homem, ele está nos protegendo, está protegendo a identidade deste país e é nosso direito resgatá-la'."

Risco de guerra cresce 40% em 10 anos

"Nós sabemos quais são os dois grandes fatores de risco. Isso já é uma grande coisa, nos dá tempo. Também sabemos que se um país tem esses dois fatores, se é uma democracia parcial e seus partidos políticos estão baseados em identidade, o risco anual de guerra civil aumenta 4%. Parece pouco, mas na verdade não é. Depois de dez anos o risco é de 40%, após 20 anos é de 80%.

Então, sabemos o que tem que ser feito: democracias fortes e saudáveis não passam por guerras civis. Se o país não estiver disposto ou não for capaz de fazer reformas, o risco aumentará. E a outra maneira de evitar uma guerra civil é reprimir os cidadãos. Mas esse é o instrumento de um autocrata.

O melhor a fazer é colocar a casa democrática em ordem. E regular as mídias sociais."

Como cidadãos comuns podem contribuir

"[O que cidadãos comuns podem fazer é] passar menos tempo nas redes sociais. Elas são uma ferramenta de radicalização muito eficaz. Se você quer se proteger das teorias da conspiração e da desinformação extremista, a melhor coisa que pode fazer é diminuir seu tempo online, não dar like em nada, [evitar] essas coisas básicas que permitem que os algoritmos direcionem material cada vez mais extremo para o seu feed. Estar ciente de que grande parte da desinformação, da retórica antidemocrática e divisora está sendo empurrado para as pessoas pela internet e a maioria nem se dá conta disso."

Empresariado da África do Sul ajudou a evitar guerra

"Todo mundo esperava que houvesse uma guerra civil nos anos 1980 na África do Sul. Tinha todas as precondições — uma grande maioria negra que foi excluída do governo de uma minoria branca, que reprimia os protestos com uma brutalidade crescente.

A forma como a guerra foi evitada pode ser uma grande lição para o Brasil. O regime branco do Apartheid não tinha interesse em reformas políticas, eles teriam ido para a guerra para manter seu poder. Eles desistiram porque a comunidade empresarial branca estava sendo cada vez mais prejudicada por sanções econômicas. O Japão, os Estados Unidos e a comunidade europeia eram os maiores parceiros comerciais da África do Sul e impuseram sanções econômicas muito firmes. Isso estava prejudicando cada vez mais os empresários brancos, até o ponto que eles tiveram que tomar uma decisão: escolher ter lucros ou o Apartheid, não podiam ter os dois.

A única maneira de retirar as sanções econômicas era se o Apartheid acabasse. Eles foram ao regime e disseram que não o apoiavam mais, foi quando o regime soube que estava acabado. Ele rapidamente transferiu o poder para a maioria negra e, no processo, evitaram a guerra civil.

O empresariado do Brasil pode desempenhar um papel importante em garantir que outro aspirante a autocrata ou o próprio Bolsonaro nunca volte ao poder. Ou, se forem eleitos, que não sejam capazes de minar a democracia brasileira ainda mais."