'A maconha salvou minha família': mãe luta por acesso à cannabis medicinal
"Minhas filhas me ensinaram tudo. Sem elas não seria o que sou hoje", diz Cristiane Palacios, ativista, consultora canábica e mãe de Luisa, 14, e Valentina, 8. Foi através das duas que Cris se envolveu em várias lutas: a dos pais de crianças com deficiência e autismo, do acesso à cannabis medicinal, da legalização da maconha e também pelos direitos de crianças e adolescentes LGBTQIA+.
Ela encontrou nessas causas o apoio de outras mães e pais, desconstruiu seus preconceitos e pôde ajudar mais pessoas a obter o tratamento adequado para suas filhas.
Com esse aprendizado, deu ainda suporte a médicos no tratamento de centenas de pacientes com canabidiol e se tornou consultora de uma empresa de medicamentos à base de cannabis.
Mas sua defesa da planta vai além de qualquer laboratório: "As pessoas têm que ter acesso [à cannabis medicinal] na farmácia do SUS, via cultivo, via associações. Tem que ter todos os acessos, é por isso que eu luto".
Um tratamento natural
Esse engajamento começou em 2014, quando Valentina, sua filha mais nova, nasceu e foi diagnosticada com Síndrome de Down. Cris ficou em choque. "Passei por um luto da filha idealizada. Eu não tinha conhecimento do que era a Síndrome de Down, então já comecei a chorar achando que ela morreria cedo. Depois eu vi que tinha preconceito e uma ideia deturpada do que é [viver com Down]", diz a Ecoa.
A "ideia deturpada" começou a mudar quando ela foi acolhida, ainda no hospital, pelo Movimento Down. A iniciativa produz cartilhas entregues às famílias com orientações para combater preconceitos, buscar saúde e inclusão para pessoas com Down.
A partir daí, Cris correu atrás do acompanhamento multidisciplinar necessário para o desenvolvimento de Valentina e tudo correu bem até ela completar quatro anos. Foi quando a criança começou a regredir nas habilidades sociocomunicativas e a apresentar problemas gastrointestinais sérios. Pesquisando, a mãe descobriu que poderia se tratar de um transtorno do espectro autista.
Mas levou tempo até que um médico fechasse o diagnóstico, um obstáculo comum em casos como esse. Quando isso aconteceu, começou a busca pelo tratamento, que varia. Não existe "cura" ou mesmo um medicamento específico para o autismo. Encontrar o remédio adequado muitas vezes envolve um processo de tentativa e erro.
Desespero e Facebook
Em 2018, depois de internações sucessivas de Valentina, Cris beirava o desespero. Ao mesmo tempo, se angustiava com os efeitos colaterais trazidos por medicamentos como a risperidona. Ela começou então a buscar tratamentos alternativos para a recuperação da filha, que havia deixado de comer, dormir e interagir.
"Eu sempre procurei o tratamento mais natural possível para as minhas filhas. Tentei buscar homeopatia, vários outros tratamentos integrativos, mas não via resultado. Amenizava, mas daqui a pouco voltava tudo", diz.
Esgotada, resolveu pedir ajuda num grupo do Facebook. Foi ali que ouviu falar pela primeira vez do canabidiol: a mãe de um menino que também tinha o duplo diagnóstico de Síndrome de Down e outra condição rara respondeu que o filho tinha apresentado melhora com o uso do medicamento.
Cris não sabia o que era o canabidiol, mas ficou reticente ao descobrir que vinha da maconha. "Eu tinha muito preconceito nessa época", conta. Apesar disso, decidiu dar uma chance.
Com o óleo, Valentina teve uma boa melhora logo de início, mas ainda levou quase um ano para ajustar a dose e composição certas do medicamento. Na época, havia ainda outras barreiras: o processo de importação do óleo de cannabis era burocrático e demorado, além de custar caro.
Hoje, quatro anos depois de iniciar o tratamento com um óleo full spectrum (feito com o extrato integral da planta), com alto teor de CBD e baixo THC, Valentina se transformou. A menina teve ganhos na socialização, na cognição, no sono e até na imunidade.
O acesso ao medicamento no Brasil também avançou: "De lá até aqui já evoluiu muito. Hoje em dia a acessibilidade é muito maior. É muito mais rápido, mais fácil e o valor é muito menor".
Missão de vida
Ao procurar o melhor tratamento para a filha, Cris se tornou uma especialista autodidata em cannabis medicinal. "Comecei a buscar informação. Entrei em tudo quanto era curso, palestra, congresso, em todas as associações que existiam no Brasil na época, tudo que tinha a ver com cannabis", diz.
Esse conhecimento permitiu que ela ajudasse outras famílias fornecendo indicações, orientações e desmontando golpes em grupos online, onde é comum a venda de óleo de cannabis falsificado.
Por meio de seu contato com a empresa Reaja, que conheceu num desses eventos, ela conseguiu kits de reagentes colorimétricos - utilizados para testar a composição do óleo de cannabis e de outras substâncias - para doar aos pais que vinham sendo vítimas de golpes.
Com o tempo, ela também foi buscar credenciais para atuar profissionalmente nessa área e hoje é consultora pela multinacional Pangaia CBD, que atua no mercado brasileiro desde 2019. A empresa foi uma indicação do professor da Unifesp Elisaldo Carlini, pioneiro no estudo da maconha medicinal, que Palacios conheceu em um simpósio sobre o tema. O laboratório foi o primeiro a fornecer um óleo com as características que Valentina precisava. "É o que ela toma até hoje", afirma.
Vendo a transformação da filha a partir do medicamento, Cris quis espalhar a boa-nova. Desde o início, quando começou a aprender sobre a Síndrome de Down após o diagnóstico da filha, ela entrou de cabeça no ativismo como forma de ajudar outras pessoas. "Eu sempre me envolvo, tenho muito essa questão da coletividade", diz.
Esse percurso deu a ela a experiência necessária para auxiliar médicos no acompanhamento terapêutico de pacientes que estavam começando a se tratar com o óleo de cannabis.
Através de entidades como a Abuc, Associação Brasileira de Usuários de Cannabis Medicinal, ela e outras mães ativistas assistiram muitos médicos no ajuste das doses e na identificação de fatores que poderiam interferir no tratamento, como a alimentação e o uso de outros medicamentos. "É o que eu mais gosto de fazer. Vejo como uma missão de vida", ela diz.
Além de atuar profissionalmente como consultora e divulgadora da cannabis medicinal, Cris passou a defender a legalização da droga.
"A maconha salvou a minha família. Eu era preconceituosa, hoje levanto a bandeira do [uso] recreativo, porque o recreativo também é medicinal. As pessoas têm que parar de comprar do tráfico, parar de alimentar a violência. Fora isso, tem toda a sujeira que vem na maconha prensada. A gente precisa lutar pela legalização"
Cris Palacios
Duas vezes 'mãe pela diversidade'
Em paralelo ao tratamento de Valentina com a cannabis medicinal, Cris acompanhou a transição de gênero da filha mais velha, Luisa.
"Também foi um processo difícil, doloroso. Mas logo já estava preparada para ir à luta pelos direitos", conta. Mais uma vez, ela foi acolhida por mães e pais que já haviam trilhado aquele caminho: primeiro no GPH (Grupo de Pais de Homossexuais), criado no fim dos anos 1990 pela professora universitária Edith Modesto, e depois no coletivo Mães pela Diversidade.
Hoje, Luisa já tem um RG com seu nome social e faz acompanhamento no Ambulatório de Transtorno de Identidade de Gênero e Orientação Sexual, ligado ao Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas. Mas, segundo a mãe, a briga para ter sua identidade respeitada na escola e em outros espaços é constante.
"A gente sofre todo dia. Ela sofre de fobia social, depressão e ansiedade e não é por conta de disforia de gênero. Com isso ela está muito bem resolvida. É por conta dos ataques da sociedade, do preconceito. A Valentina também. Em quantas escolas ela foi rejeitada, dizendo que não tinham condições de recebê-la?", desabafa.
Através do Mães pela Diversidade, Cris também tem procurado ajudar pais de crianças e jovens LGBTQIA+, encaminhando-os para os grupos que a acolheram e dando informações sobre onde conseguir acesso à hormonioterapia nessa faixa etária. "Eu levo a cannabis e a questão do movimento LGBT para todos os lugares", diz.
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