Belém: Periferia comemora dobro de calouros com bloco de Carnaval
A comemoração da aprovação na universidade é uma tradição afetiva que tem um rito em Belém. As rádios criam uma atmosfera que toma conta da cidade, com a divulgação do listão dos aprovados. Tem até hino oficial para a festa. Em carro aberto ou pelas ruas, eles festejam cantando "Alô papai, alô, mamãe", refrão da "Marcha do Vestibular", do cantor paraense Pinduca. A música pode ser ouvida em todos os cantos da cidade, independente do bairro ou da classe social.
Na periferia, a conquista tem um sabor maior e, este ano, o resultado coincidiu com o Carnaval. Resultado: para comemorar uma das maiores aprovações no bairro da Terra Firme, que é considerado zona vermelha, os calouros participaram de um bloco. Zona vermelha, em Belém, são as regiões com maior índice de crimes na cidade.
A ideia do bloco é do coletivo "Tela Firme", um veículo de comunicação popular produzido pela própria comunidade, que atua há nove anos divulgando boas notícias do bairro nas redes sociais. Este ano, a comemoração teve a participação especial das crianças moradoras de lá.
"Quantas delas (crianças) devem se inspirar e querer passar na universidade também? São crianças que estão acostumadas com todo tipo de violação de direitos e que tiveram a chance de subir no trio elétrico com os calouros, se divertir e ver que é possível ter um futuro melhor", diz o fundador do coletivo, o geógrafo Francisco Batista. Segundo ele, nos anos anteriores, o estudo remoto, estabelecido por conta da pandemia de covid-19, prejudicou mais quem mora nas periferias, já que o acesso à internet, a laptops e a smartphones era mais restrito nesses bairros.
Pelas ruas do bairro, mais de 30 aprovados, em diversos cursos da Universidade Federal do Pará (UFPA) e da Universidade do Estado do Pará (UEPA), ganharam ovo e maizena na cabeça ao som da marcha oficial de Pinduca.
Como ato simbólico, os estudantes fizeram uma foto na ponte do canal do Tucunduba, que liga a Terra Firme a outro bairro da periferia, o Guamá.
"A ideia de fazer a foto lá foi de ressignificar esse espaço, que, até meados dos anos 2000 era considerado um local violento, perigoso", explica Batista.
Ele conta ainda que, este ano, além do aumento da aprovação, houve mais um motivo para comemorar. O número de estudantes do bairro que conseguiram uma vaga em medicina: "Só este ano tivemos pelo menos quatro calouros de medicina. Isso nunca tinha acontecido", comemora.
Roni Oliveira Pinheiro, 21 anos, é um deles. Ele garantiu vaga nas duas universidades, após cinco anos de espera e depois de ter cursado um ano de ciências contábeis, que abandonou em 2021.
"Sempre achei que medicina era algo muito distante pra mim porque não tinha recursos para estudar em um cursinho, nem acesso a materiais de plataformas pagas, apostilas. Até que resolvi fazer outro curso e sempre me perguntava o que estava fazendo ali", relembra Roni que sempre sonhou em ser cardiologista.
Filho de pai marceneiro e mãe dona de casa, Roni é o filho do meio e o único da família a entrar em uma universidade. Para melhorar seu desempenho, participou de um cursinho pré-vestibular gratuito e realizou simulados pela internet.
"Estou muito feliz porque através do cuidado com as pessoas posso mudar a realidade delas e da minha família. Independente de qualquer dificuldade que eu venha a ter (com custos do curso), quero usar esse conhecimento para mudar a vida da minha comunidade", exalta.
Isabela Cristina Silva, 19, também passou em medicina nas duas universidades. Ela cursou o segundo grau em escola particular graças a uma bolsa de estudos. Mas para a estudante, além do suporte do ensino, o incentivo dos pais foi determinante.
"Meus pais sempre fizeram de tudo para que eu e meus irmãos tivéssemos a melhor educação e sonharam que eu fizesse medicina, mas eu não tinha certeza do que fazer. Hoje acho que posso mudar a realidade da saúde, até porque a gente vive esses problemas quando precisa de atendimento no dia a dia".
Do bairro vizinho Guamá, Josivaldo Jr., 17, também é calouro da área da saúde. Ele escolheu o curso de nutrição. Estudante de escola pública, seguiu o exemplo dos irmãos que se formaram em outros cursos na Universidade Federal do Pará.
O pai trabalha como bilheteiro na rodoviária de Belém e a mãe está desempregada. Mesmo com todas as dificuldades, ele conseguiu entrar na universidade na primeira tentativa:
"O estudante da periferia é logo estereotipado porque mora em uma área de risco, mas isso (aprovação) mostra que basta o apoio e incentivo para que se sintam confiantes em prestar o vestibular e a minha família sempre me apoiou", diz Josivaldo.
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