'Traidor' para alguns, cacique que fundou RJ distribuiu terras a indígenas
Quem procurar no Rio de Janeiro por uma estátua de Arariboia, cacique do século 16 que liderou numerosas batalhas decisivas para a fundação da capital fluminense, não a encontrará. O monumento existe no centro da vizinha Niterói, também fundada por ele, mas não no Rio.
Essa ausência é questionada por Rafael Freitas da Silva, jornalista e biógrafo de Arariboia. Segundo ele, o indígena não só foi fundador e protetor do Rio de Janeiro em seus primeiros anos como o principal personagem da cidade nessa época.
Para o autor, uma homenagem ao indígena deveria ocupar o lugar da pirâmide que honra o militar português Estácio de Sá, no Flamengo, normalmente mais lembrado como fundador do Rio.
Com sua pesquisa em fontes centenárias, o biógrafo procurou desfazer os mitos e acusações contra Arariboia, mas admite que o cacique é uma figura complexa.
Ele guerreou ao lado dos portugueses contra tamoios e franceses, foi condecorado Cavaleiro da Ordem de Cristo, recebeu terras e salário do rei de Portugal e se converteu ao catolicismo.
Mas estendeu os benefícios que obteve dos portugueses a outros indígenas, principalmente os de seu povo, livrando-os da escravização, distribuindo terras e abrindo espaço para que participassem da sociedade colonial em formação em uma condição menos subalterna.
Carioca = casa do indígena
Para entender a história de Arariboia, tido como traidor por alguns autores de hoje devido a sua aliança com os portugueses, é preciso conhecer o passado indígena da Baía de Guanabara e os conflitos provocados pela colonização.
Segundo Freitas da Silva, que também é autor do livro "O Rio antes do Rio", a baía tinha enormes aldeias tupinambás em toda sua extensão, muito populosas. O próprio termo "carioca" teria origem no nome de uma aldeia tupinambá e de um rio que passava por ela, e quer dizer "casa dos carijó", outro povo indígena. Na Ilha do Governador, habitavam os maracajás (um subgrupo tupinambá) de Arariboia.
Expedições portuguesas deram início à colonização no atual litoral paulista em 1532. Já na Baía de Guanabara, começavam a aparecer comerciantes franceses em busca de Pau Brasil, pimenta, animais e escravizados. Em 1555, os franceses chegaram a criar uma colônia no local, a França Antártica.
"Naquela época, o mundo entre os indígenas [da costa do Brasil] se dividia entre aqueles que estavam com os portugueses e aqueles que acabaram formando alianças com os franceses, e esses dois grupos guerreavam entre si", resume o autor do livro sobre Arariboia.
Perseguidos e escravizados pelos franceses na Baía de Guanabara, os maracajás remanescentes foram se refugiar no Espírito Santo. De acordo com o relato de um jesuíta, eles foram resgatados - ainda que tardiamente - da baía e levados para a capitania vizinha pelos portugueses.
"Para ele não foi uma escolha, essa sociedade já estava dada. Ele não viveu a época em que os europeus não estavam presentes"
Rafael Freitas da Silva, autor de "Arariboia - O indígena que mudou a história do Brasil"
Arariboia surge nas fontes históricas por volta de 1562, como o jovem líder de uma dessas aldeias estabelecidas no ES. Nos anos seguintes, ele foi convocado por Estácio de Sá a guerrear ao lado dos portugueses para expulsar os franceses da baía e enfim fundar a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.
Entre 1565, ano oficial da fundação da cidade no Morro do Castelo, até 1567, foram inúmeras batalhas e perseguições, com mortes principalmente de tamoios e de alguns franceses.
"O Arariboia estava nessas batalhas e sobrevive a todas elas. Ele não assistia de longe, era o capitão dos indígenas. Pelo que a gente conhece dessas batalhas, os indígenas eram o primeiro pelotão, a infantaria colocada na frente dos europeus. Antes de os europeus se envolverem nas batalhas, os indígenas guerreavam entre si", diz Freitas da Silva.
'Não era marionete dos portugueses'
Depois que os portugueses conquistaram definitivamente a Baía de Guanabara, por volta de 1568, Arariboia foi recebido pelo governador geral do Brasil Mem de Sá e disse que queria voltar para o Espírito Santo.
As terras da baía que o cacique ajudou a livrar dos franceses já tinham sido repartidas entre portugueses e ele até então não tinha recebido nenhuma.
"Em vez de pedir diretamente, ele fala que vai embora porque se ele fosse e levasse consigo todos os indígenas, os portugueses iam ficar à mercê dos tupinambás de novo, ainda existiam muitos pelo interior", explica Freitas da Silva. "Eu vejo isso como uma astúcia, uma inteligência de alguém que sabia que merecia o que estava cobrando".
Percebendo que precisavam da presença de Arariboia na cidade recém-fundada, os portugueses deram ao cacique as terras do que viria a ser a cidade de Niterói.
Ainda assim, Arariboia continuou no Rio de Janeiro. Por mais de uma década, ele viveu no local onde antes estava a aldeia tupinambá de Jabebiracica, uma das principais da Guanabara, na atual Zona Norte da Cidade.
Ali, ele se tornou uma figura respeitada e conhecida de São Sebastião do Rio de Janeiro. Seu casamento foi o principal evento da cidade no ano de 1570: estavam lá o governador e os principais donos de terras. Por conta de suas posses e prestígio, seus filhos e parentes eram cobiçados pelas famílias da cidade.
Além disso, ele usava da sua influência para conseguir que indígenas fossem pagos pelos trabalhos que faziam, como a construção dos fortes na Baía de Guanabara e a participação em expedições, quando a regra era o regime de escravidão.
Arariboia morreu já idoso, por volta de 1589, provavelmente vítima de uma epidemia de varíola. Apesar de os jesuítas o descreverem como cristão fervoroso, um padre de passagem pelo Rio de Janeiro registrou que, nos seus últimos momentos, ele falava de uma viagem para reencontrar seus ancestrais, crença ligada à espiritualidade indígena.
"A gente precisa repensar a nossa história, ela foi contada pelos conquistadores, pelos portugueses", reflete Freitas da Silva.
Em vez de julgá-lo com os olhos de hoje, o biógrafo propõe entendê-lo de acordo com sua época e destaca sua altivez:
"Ele não era uma marionete dos portugueses, em vários momentos ele se impõe, se coloca. Os portugueses não davam nada realmente aos indígenas, ele conquista isso. Prefiro olhar o Arariboia como um protagonista indígena na nossa história".
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