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'Questão de sobrevivência': Ela quer novo olhar da moda para o clima

Eloisa Artuso: "A Febre nasceu da vontade de desafiar, com honestidade, as estruturas de poder da moda".  - Arquivo Pessoal
Eloisa Artuso: "A Febre nasceu da vontade de desafiar, com honestidade, as estruturas de poder da moda". Imagem: Arquivo Pessoal

Bárbara Poerner

Colaboração para Ecoa, em Florianópolis (SC)

05/03/2023 06h00

Eloisa Artuso trabalha com moda há 20 anos, mas sempre questionou algumas práticas da indústria, como a alta emissão de poluentes e as violações de direitos humanos que atingem, em sua maioria, mulheres no trabalho. Com muita experiência acumulada e após anos de inquietação, a pesquisadora e educadora de design sustentável se juntou ao documentarista Raphael Erichsen para criar o Instituto Febre, uma organização que explora as intersecções entre gênero e clima no setor.

Lançada oficialmente em 2023, a Febre tem como foco principal a elaboração de estratégias para dar protagonismo às mulheres da moda na agenda de justiça climática em nível nacional e global. Com um podcast de cinco episódios prestes a ir ao ar, a entidade quer debater a incidência de assuntos na moda, como direitos das mulheres, consumo, racismo ambiental, futuro do planeta e direito ao território. Especialistas e ativistas como Samela Sateré Mawé, Marina Marçal e João Cerqueira são alguns dos convidados.

"A Febre nasceu da vontade de desafiar, com honestidade, as estruturas de poder da moda para que de fato possamos resolver os problemas pela raiz e enfrentar o capitalismo de frente. Temos um olhar crítico e criativo, que nos ajuda a buscar novas formas de produzir conhecimento e divulgar informações importantes para mobilizar as pessoas a agirem", explica Eloisa, que também foi uma das fundadoras do Fashion Revolution Brasil. "Não queremos cair no perigo de ter um discurso raso. Isso ficou visível para nós em alguns movimentos e iniciativas do setor: você acaba se adaptando ao sistema que quer modificar".

Diversidade é um pré-requisito do instituto, que já começou com um comitê consultivo e uma gama de apoiadores. Dele fazem parte especialistas de diferentes áreas, como Julia Vidal, Viviana Santiago, Suéli Feio e Mônica Souza. "Não temos vontade de protagonizar nenhum diálogo, mas sim de construí-lo", diz Eloisa sobre a missão do grupo. Isso permite, continua a diretora, fortalecer um dos principais valores da Febre, a colaboração, além de somar conhecimentos para lidar com um setor tão desafiador quanto o do têxtil e vestuário, marcado pela informalidade, por violações de direitos humanos e pela geração de toneladas de resíduos sólidos anualmente.

2 - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Eloisa Artuso em uma montanha de resíduos sólidos produzida em apenas um dia em uma fábrica.
Imagem: Arquivo Pessoal

Outra importante frente de atuação do instituto é o advocacy, que visa uma agenda de políticas públicas voltadas a grupos vulneráveis, como as mulheres que trabalham na indústria. Segundo ela, "a moda, como setor, não está devidamente organizada para isso. Quando está, são os representantes patronais, e as vozes das mulheres de baixo são pouco reconhecidas e ouvidas. O advocacy é um assunto que gera quase um desconforto".

Do gênero ao clima, os desafios se conectam

Eloisa acredita que a indústria da moda, como um todo, ainda carece de uma visão mais abrangente sobre desenvolvimento sustentável, o que torna assuntos como gênero e clima sub-pautados num setor em que 60% da força produtiva brasileira é composta por mulheres, segundo a Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit). Essas mesmas mulheres, lembra ela, também são um dos grupos mais impactados pela crise climática.

"As mulheres sofrem abusos e violações que são específicas de gênero. Tem a ver com saúde e segurança no trabalho, assédio e abuso sexual e verbal, dupla e tripla jornada de trabalho, e até o acesso a creche, escolas, licença maternidade e postos de saúde", afirma a educadora. Ela aponta que tais problemas aparecem em toda a cadeia produtiva da moda, começando pela produção de matéria-prima. "Quem são as pessoas expulsas dos seus lugares de origem quando o agronegócio [da cotonicultura] se expande pelo Cerrado? Ou aquelas expostas aos agrotóxicos usados nas plantações de algodão e celulose para viscose? A Febre contribui no sentido de ligar esses pontos", diz.

A moda mudou?

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Eloisa é fundadora da Fashion Revolution Brasil
Imagem: Arquivo Pessoal

Em 2018, Eloisa coordenou o primeiro Índice de Transparência da Moda Brasil, um relatório que analisa como grandes varejistas nacionais divulgam suas práticas socioambientais. Isso fez com que a pesquisadora acompanhasse mudanças significativas nas maiores empresas de vestuário do país. "A pressão foi importante para as coisas mudarem. Hoje, é possível entrar no site de uma marca e encontrar um relatório de sustentabilidade. Mesmo que estejam faltando algumas informações, isso há alguns anos nem existia", avalia.

Contudo, a diretora afirma que os impactos da indústria da moda ainda são extremamente nocivos às pessoas e ao planeta, o que exige mudanças emergenciais e mais radicais. Por exemplo, para evitar o aumento de 1,5ºC, o setor da moda terá que reduzir suas emissões de gases de efeito estufa em mais da metade até 2030, mas até agora o comprometimento de grandes marcas foi irrisório. "É uma escolha: você quer continuar existindo, deseja que seus filhos ou netos continuem tendo água limpa e um clima equilibrado? É uma questão de sobrevivência", diz Eloisa.

Nesse sentido, uma das missões da Febre é cobrar responsabilidades, de todos que compõem o setor, com a agenda de justiça climática. "Se o mundo é desigual, por que a moda não pode ajudar a lidar com essas desigualdades? Se ela tem o poder de desenhar contextos e imagens que as pessoas queiram ser, por que não fazer isso com base na realidade e num mundo e futuro possível?", finaliza.