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Com cacique, bispo e MST, romaria reúne 4.000: 'Terra não é mercadoria!'

A 45ª edição da Romaria da Terra do RS reuniu mais de 4 mil pessoas em Eldorado do Sul - Divulgação
A 45ª edição da Romaria da Terra do RS reuniu mais de 4 mil pessoas em Eldorado do Sul Imagem: Divulgação

Adriana Machado

Colaboração para Ecoa, em Eldorado do Sul (RS)

12/03/2023 06h00

As mais de 4 mil pessoas que tomaram as ruas da pequena Eldorado do Sul, cidade a cerca de 17 km de Porto Alegre, em plena terça-feira de Carnaval não usavam fantasias nem tocavam bateria. O enredo desse 'bloco' era fé e respeito à mãe natureza e preocupação com o sustento no campo em tempos de seca e fome.

Esses sentimentos moveram as pessoas que participaram de uma das mais tradicionais festividades religiosas do país, a Romaria da Terra do Rio Grande do Sul, realizada no Assentamento Integração Gaúcha, mais conhecido como Irga (Instituto Rio Grandense do Arroz).

A peregrinação é organizada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), Via Campesina, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, Conselho Indigenista Missionário Sul (Cimi), a Comissão das Pastorais Sociais e a Cooperativa dos Trabalhadores Assentados da Região de Porto Alegre (Cootap).

O lema deste ano foi 'Terra e Pão: em defesa dos territórios e produção' e foi bastante propício para um momento que é bastante preocupante para quem tira seu sustento da natureza.

O Rio Grande do Sul literalmente queima com mais uma grande seca no campo (no seu terceiro ano consecutivo), que está provocando prejuízos para milhares de famílias que perderam a produção de um ano inteiro.

Direitos e proteção para o campo

Romaria da terra - Adriana Machado - Adriana Machado
O cacique kaingang Natalino dos Santos, de 76 anos, participou pela primeira vez da Romaria
Imagem: Adriana Machado

A romaria surgiu há 45 anos para resgatar a defesa dos direitos dos indígenas. Em especial, dos Sete Povos das Missões, conjunto de sete aldeias fundadas pelos Jesuítas espanhóis, também conhecidas como Missões Orientais por estarem localizadas a leste do Rio Uruguai.

Com o tempo, a festa virou um grande manifesto, com pautas reivindicatórias do povo camponês, como mais políticas agrárias para pequenos agricultores, condições de trabalho para a juventude camponesa, pedido do fim de barragens, proteção das comunidades quilombolas, da mulher camponesa e pela produção sem venenos no campo.

Neste ano, agricultores, políticos, freis, bispos, representantes de movimentos sociais e outras autoridades tomaram as ruas da cidade para uma caminhada de 3 km até o Assentamento Integração Gaúcha.

Durante o percurso, muitas figuras se destacavam. Caso do Cacique kaingang Natalino dos Santos, de 76 anos, de São Gabriel. "Participo pela primeira vez da Romaria e estou maravilhado. Acho importante a união dos trabalhadores do campo e os povos indígenas", disse.

No caminho dos fiéis, manifestações pelo fim dos produtos químicos nos alimentos, distribuição de arroz agroecológico e uma banca de feira com alimentos à venda, para reforçar a importância do consumo de alimentos saudáveis e a troca de ideias entre agricultores e as pessoas da cidade.

Sem veneno na comida

Romaria da terra - Adriana Machado - Adriana Machado
Romaria é hoje um grande manifesto com pautas reivindicatórias do povo camponês
Imagem: Adriana Machado

Frei Wilson Dallagnol, de 68 anos, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), revelou otimismo com os objetivos da Romaria. "Fomos felizes em divulgar as vantagens da produção ecológica, com o mínimo de veneno e defensivos agrícolas, além da ideia positiva da reforma agrária e a importância da agricultura familiar, do cooperativismo e associativismo na busca de mercados".

A programação se iniciou dois dias antes quando o assentamento sediou o Acampamento dos Povos da Terra em Romaria, com muitas apresentações artísticas em celebração à Sepé Tiarajú, guerreiro indígena brasileiro, da etnia guarani, considerado santo popular e declarado herói guarani missioneiro rio-grandense, por lei.

Isto porque, no dia 7 de fevereiro de 1756, em uma terça-feira de carnaval, os invasores espanhóis e portugueses mataram São Sepé Tiaraju e outros 1.500 indígenas, exterminando a República Cristã dos Guaranis. A cada ano, os romeiros da terra fazem ecoar o grito de Sepé:

Alto lá, esta terra tem dono. Nós a recebemos de Deus e só Ele nos pode tirar. Grito tradicional da Romaria da Terra

Romaria da terra - Divulgação - Divulgação
O Assentamento Integração Gaúcha é referência em práticas agroecológicas e produção de orgânicos
Imagem: Divulgação

Carta dos Guaranis

Os cerca de 250 indígenas da etnia Mbya Guarani, de 38 aldeias, se reuniram para debater seus problemas e demandas. No 14º Encontro em Memória de Sepé Tiaraju e na defesa da Mãe Terra foram elaborados documentos que serão entregues a órgãos de assistência dos povos originários e ao governo do Estado.

Para a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Secretaria Especial da Saúde Indígena (Sesai/Ministério da Saúde) e governo do Estado, as demandas envolvem direitos a uma assistência diferenciada nas áreas de saúde, educação, nutrição, habitação, agricultura tradicional e à demarcação, regularização e garantia das terras.

"Os brancos degradam o ambiente através de projetos gananciosos que destroem os espaços sagrados de vida, contaminam as águas, devastam as matas e exterminam os animais silvestres, as aves e os peixes", traz um dos trechos das cartas.

Para Roberto Liegbott, do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), o evento serviu para discutir pautas políticas, as místicas guaranis, a busca da terra sem males e a unidade dos povos indígenas com as comunidades do campo e da terra.

Estamos aqui para reforçar a importância da economia solidária e também dos alimentos sem agrotóxicos. Roberto Liegbott, do Conselho Indigenista Missionário do RS

Liderança da região de Maquiné, a guarani Júlia Gimenes, de 63 anos, mãe de seis filhos, se diz preocupada com a segurança da família. "Precisamos de terra, casa e plantio. Do alimento para poder cuidar da nossa saúde. Caso contrário, não sei como vamos viver."

Direitos das mulheres

Os debates também falaram das mulheres no campo, e de temas como violência e o papel social nas comunidades. Presença marcante em todas as edições da Romaria, a agricultora Oldi Helena Jantsch, de 72 anos, vinda da cidade de Lajeado (RS), esbanjava energia e orgulho ao falar de sua história de vida.

Segundo ela, seus antepassados vieram da Itália e da Alemanha trazendo no navio muitas sementes. Foi com a família que ela aprendeu a importância do cultivo antigo das plantas utilizadas na alimentação, sem alteração genética ou a utilização de produtos químicos.

Agroecologia é vida. Precisamos recuperar as fontes dos rios, construir cisternas e multiplicar as feiras ecológicas para poder vender nossos produtos. Oldi Helena Jantsch, frequentadora da Romaria da Terra

Exemplo de práticas ecológicas

Romaria da terra - Adriana Machado - Adriana Machado
Durante a romaria, participantes distribuíram porções de arroz agroecológico produzido no assentamento
Imagem: Adriana Machado

O Assentamento Integração Gaúcha é referência em práticas agroecológicas em território responsável pela produção do arroz, frutas e hortaliças comercializadas em feiras orgânicas e mercados da Região Metropolitana de Porto Alegre.

Mais de 60 famílias produzem alimentos sem agrotóxicos, numa área de 1.100 hectares. No começo, passaram a investir em hortas que garantissem o sustento, atualmente, a produção é organizada por meio de cooperativas ou pequenos grupos.

No assentamento, há centro comunitário, escola de educação infantil e outros espaços que de atividades para todas as faixas etárias. O local tem uma longa história de resistência, de luta, de produção. Bem como uma relação com o meio ambiente.

"O Planeta Terra não é mercadoria, é território de todos os povos, precisa ser cuidado com amor e respeito. A festa popular é feita para reavivar a memória, a fé, a esperança, o cuidado, a solidariedade com os pobres da terra, fortalecer as lutas sociais e melhoria das condições de vida do povo do campo e da cidade", disse Luiz Antônio Pazinato, da coordenação da Comissão Pastoral da Terra do RS.