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Em cidade que distribui dinheiro, petróleo está combatendo a fome

Cidade de Maricá (RJ) dá 200 mumbucas, que equivalem a R$ 200, como renda básica a moradores - Divulgação/Banco Mumbuca
Cidade de Maricá (RJ) dá 200 mumbucas, que equivalem a R$ 200, como renda básica a moradores Imagem: Divulgação/Banco Mumbuca

Giacomo Vicenzo

De Ecoa, Em São Paulo

16/03/2023 06h00

Em Ponta Negra, bairro de Maricá (RJ), podemos encontrar a vendinha de Rosilene De Oliveira Sousa, 66 — ou dona Léa, como gosta de ser chamada. Improvisada na garagem de sua casa, ali ela comercializa itens como refrigerantes, salgadinhos, biscoitos recheados, bolos e pães. Entre as etiquetas com preços, ganha destaque uma placa, que diz, em letras garrafais: 'Cartão Mumbuca & dinheiro - Eu aceito'.

O Cartão Mumbuca, mencionado no cartaz, é uma moeda social distribuída aos moradores de Maricá desde 2013. Cada mumbuca equivale a R$ 1,00, e qualquer cidadão que more na cidade de Maricá há pelo menos três anos, e tenha renda familiar de até três salários mínimos, tem direito a receber a renda, que vem depositada em um cartão de débito. O valor é de 200 mumbucas por morador, que precisa estar cadastrado no CadÚnico (Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal). A moeda social é aceita somente dentro do município.

Achou curioso? Pois esse é, na prática, um programa de distribuição de renda feito junto aos moradores da cidade, e peça fundamental do RBC (Renda Básica da Cidadania), programa de distribuição de renda do município, que beneficia mais de 42 mil moradores em situação de pobreza.

Mumbuca fortalece comércio local e combate pobreza

Foi essa renda distribuída que trouxe mais fartura ao prato da família de dona Léa, que mora com o esposo e um neto. Ela 'usou' a mumbuca que recebe para criar a sua vendinha, que agora lhe rende até R$ 1 mil de lucro por mês.

"Faltavam as coisas em casa, já ficamos sem comer para dar às crianças. Meu filho morreu e deixou três netos comigo, hoje só mora um, mas não tínhamos como comprar legumes e carne. Agora, posso ir ao mercado e comprar essas e outras coisas", conta Léa.

Mumbuca ajudou Dona Léa a montar sua vendinha improvisada. - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Mumbuca ajudou Dona Léa a montar sua vendinha improvisada.
Imagem: Arquivo pessoal

A lógica de ser válido somente dentro da cidade faz o dinheiro circular e fortalece os comerciantes locais, que levam mais opções de produtos para dentro dos bairros, como fez Léa.

"O que mais vendo são bolos e pães, porque não tem padaria aqui perto no bairro. Fiz um caderninho para vender fiado, e tem gente que me deve até 200 mumbucas, e quando recebem já vêm e pagam tudo para mim", conta Léa.

A 'mágica do petróleo' para distribuir dinheiro

Royalties de petróleo são usados para financiar moeda mumbuca. - Getty Images/iStockphoto - Getty Images/iStockphoto
Royalties de petróleo são usados para financiar moeda mumbuca.
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Em filmes, é comum vermos a cena de um personagem sortudo escavar, por engano, uma 'reserva de petróleo' e se tornar milionário por achar o líquido fóssil valioso que jorra para o alto em seu quintal.

Na vida real, os moradores de Maricá também são beneficiados com o pré-sal próximo da costa da cidade, que recebe royalties pela exploração do petróleo na região, e tem benefícios com essa 'riqueza no quintal'.

"Maricá tem sido, nos últimos anos, a cidade do Rio de Janeiro que mais cria empregos formais. Tanto a moeda social, quanto o ônibus gratuito hoje são programas financiados pelos royalties do pré-sal", afirma Diego Zeidan, vice-prefeito de Maricá licenciado, que foi responsável pela ampliação da moeda social no município enquanto esteve no cargo de secretário municipal de Economia Solidária (2017).

Para Zeidan, que foi convidado para assumir a Secretaria de Desenvolvimento Econômico Solidário do Rio, a moeda social ajuda a quebrar a dependência econômica do petróleo na cidade, que recebeu a arrecadação recorde de R$ 2,5 bilhões em royalties pela exploração do recurso em 2022. "A mumbuca incentiva alternativas via pequenas e microempresas na cidade e dinamiza a economia", diz.

Petróleo que vira moeda e assina emprego na carteira

Leandro Ferreira, presidente da Rede Brasileira de Renda Básica, analisa que o modelo adotado por Maricá está se revelando promissor na superação do que chama de 'maldição dos recursos naturais'.

"Isso ocorre quando rendas extraordinárias obtidas com a exploração de recursos finitos levam a uma situação econômica menos vantajosa do que poderia, de fato, ocorrer com boas políticas públicas", afirma Ferreira.

A riqueza do petróleo acaba gerando ainda mais resultado, além de movimentar a economia do município. No primeiro semestre de 2022, Maricá foi a cidade brasileira que mais gerou empregos e, entre 2017 e 2020, foi o município do estado do Rio de Janeiro que mais abriu vagas formais, segundo dados do Ministério do Trabalho e Previdência e do Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados).

"A moeda social e os benefícios pagos por meio dela geram movimentação econômica regional que permite o crescimento dos comércios e serviços locais. Novos negócios passam a se instalar nestes municípios, que têm um incremento em empregos formais", diz o presidente da Rede Brasileira de Renda Básica.

Ferreira afirma que, para o país, isso significa um melhor aproveitamento dos recursos da cadeia do petróleo, indústria que tende a gerar concentração, devido a sua especialização, e alto valor agregado, mas lembra que é preciso cautela — por se tratar de um recurso finito, com o tempo, os royalties da exploração devem diminuir.

Mumbuca ganha banco e tem empréstimo sem juros

Banco faz empréstimos a juros baixos e ajuda empreendedores. - Divulgação/Banco Mumbuca - Divulgação/Banco Mumbuca
Banco faz empréstimos a juros baixos e ajuda empreendedores.
Imagem: Divulgação/Banco Mumbuca

Em 2017, a iniciativa tornou-se um banco. Além de fazer a gestão da moeda social, o Banco Mumbuca também faz empréstimos aos moradores e comerciantes locais.

"A moeda é operacionalizada pelo aplicativo da rede brasileira de bancos comunitários, que é o e-dinheiro. Oferecemos todos os serviços de um banco normal, como a abertura de conta empresarial e concessões de créditos", explica Manuela Mello, diretora presidente da Associação Banco Comunitário Popular de Maricá.

Com seis linhas de crédito, sendo cinco delas sem juros, Léa usou o empréstimo para fazer a reforma de sua casa. "O empréstimo é assim, pedi para comprar janelas, portas e telhas, mas eles não dão em dinheiro, você fala o que quer e o banco dá uma guia para comprar. Esse empréstimo precisa ser pago com dinheiro de verdade, mas a parcela era baixa e não tinha juros", conta a comerciante.

A linha usada por Léa foi a 'Mumbu/Cred - Casa Melhor Residência', que funciona na lógica de um 'grupo solidário', em que ao menos três pessoas podem requerer um crédito de até R$ 1.500 por integrante, tornando, assim, uma pessoa avalista da outra. Com até dez parcelas sem juros, o crédito cedido é direcionado para a compra do material de reforma da residência.

Maria Rocha comprou máquina de costura industrial com empréstimo feito no banco. - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Maria Rocha comprou máquina de costura industrial com empréstimo feito no banco.
Imagem: Arquivo Pessoal

A costureira Maria Rocha, 70, aproveitou a linha de crédito sem juros para aumentar o ritmo de sua produção, comprando duas máquinas de costura industriais com o crédito concedido. "Fiz dois empréstimos, comprei a primeira máquina industrial com um deles, e depois fiz mais um para comprar a outra", conta Rocha.

O recurso que viabiliza a linha de crédito vem da taxa de administração da circulação da moeda na cidade. "O banco cobra uma taxa administrativa de 2% nas transações dos comerciantes, que recebem em moeda social — menor do que a taxa cobrada pelas outras bandeiras de cartões, que geralmente cobram até 8%", diz Zeidan.

Petróleo para adotar animais abandonados e andar de ônibus

Serviços gratuitos de ônibus são oferecidos pela Prefeitura de Maricá desde 2014. - Lucas Seixas/UOL - Lucas Seixas/UOL
Serviços gratuitos de ônibus são oferecidos pela Prefeitura de Maricá desde 2014.
Imagem: Lucas Seixas/UOL

Em dezembro de 2022, um projeto de lei criou o 'Programa Mumbucão'. Aprovado pela Câmara de Vereadores, ele paga de 30 a 70 mumbucas a protetores e adotantes de cães e gatos que, em até um ano, tenham encontrado seus bichinhos nas campanhas de adoção promovidas pela Coordenadoria de Proteção Animal do município.

Já andar de ônibus de graça é algo possível na cidade desde 2014, quando a EPT (Empresa Pública de Transportes) começou a operar, oferecendo ônibus com tarifa zero. Financiados pelos recursos da exploração do petróleo, eles chegam a transportar 110 mil pessoas ao dia.

'Distribuir dinheiro' é lei e acontece em outros países

Deputado Estadual Eduardo Suplicy (PT-SP) é autor e defensor da renda básica. - Ricardo Matsukawa/UOL - Ricardo Matsukawa/UOL
Deputado Estadual Eduardo Suplicy (PT-SP) é autor e defensor da renda básica.
Imagem: Ricardo Matsukawa/UOL

Apesar de parecer uma aposta inusitada, a ideia de 'distribuir dinheiro' já é lei no Brasil, mais especificamente a Lei 10.835/2004, de autoria do deputado estadual Eduardo Suplicy (PT-SP), sendo a única no mundo que prevê uma renda que cubra alimentação, educação e saúde a brasileiros residentes no país e estrangeiros residentes há pelo menos cinco anos, independentemente de suas condições socioeconômicas.

O estabelecimento de uma renda básica de cidadania é a pauta central de praticamente toda a carreira política de Suplicy, que já viajou para países como o Quênia, que adota um modelo semelhante. No país africano, após o recebimento, alguns agricultores locais passaram a trabalhar mais por adquirirem melhores ferramentas.

"A mumbuca tem a finalidade de estimular a economia do município de Maricá. É mais do que justo dividir essa riqueza natural do petróleo com os moradores", afirmou Suplicy em conversa com Ecoa.