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'Pela comunidade': agricultora quer salvar a Caatinga por meio da educação

A agricultora Maria do Angico: "O IRPAA me ensinou muita coisa que nem meu pai conseguiu me passar. Eles me trouxeram a oportunidade e eu a agarrei". - Acervo IRPAA
A agricultora Maria do Angico: "O IRPAA me ensinou muita coisa que nem meu pai conseguiu me passar. Eles me trouxeram a oportunidade e eu a agarrei". Imagem: Acervo IRPAA

Lilian Caramel

Colaboração para Ecoa, em Campo Formoso (BA)

20/03/2023 06h00

Na Caatinga, os umbuzeiros, árvore-símbolo do bioma, estão em flor e a agricultora Maria do Angico torce para que as "trovoadas" cheguem logo. Torrenciais, as chuvas do sertão levam este nome porque, quando começam na primavera, provocam tempestades, revitalizando a mata cinza que hibernava à espera do aguaceiro. Se a chuva cair sobre o fundo de pasto do Angico, em Canudos (BA), onde Maria mora, a cisterna-calçadão e o barreiro-trincheira serão reabastecidos. E ela, então, poderá fazer o que mais gosta: plantar hortaliças, verduras e ervas medicinais.

Os dois reservatórios para captação de água foram construídos graças a um programa da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), coordenado na região pelo Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (IRPAA), ONG de Juazeiro (BA). Contemplada pelo projeto, Maria recebeu assessoria do instituto sobre como estocar e usar a água no quintal produtivo. A cisterna-calçadão tem capacidade para 52 mil litros e capta águas por meio de um piso de concreto onde a chuva cai e escoa para a caixa d'água. Já o barreiro é um tanque longo e estreito, no formato de uma trincheira, com capacidade para armazenar 500 mil litros.

'Veio a oportunidade e eu agarrei'

Maria recebeu os equipamentos em 2010 e, desde então, consegue plantar todo ano. O IRPAA a apoia com assistência técnica sobre aproveitamento integral das hortaliças, adubação orgânica, manejo dos caprinos, entre outras técnicas sustentáveis. Na época das chuvas, Maria fornece várias verduras cultivadas sem agrotóxicos para os mercadinhos locais. Também cria galinha caipira, patos e vende os ovos, o que ajuda na renda familiar. "Os técnicos do instituto me ensinaram muita coisa que nem meu pai conseguiu me passar. Eles me trouxeram a oportunidade e eu a agarrei", conta.

Quando o bispo de Juazeiro Dom José Rodrigues, conhecido pelo ativismo em defesa das comunidades rurais, fundou o IRPAA em 1990, Maria morava em São Paulo. Ela acompanhava o marido que trabalhava em uma rede de supermercados e, na época, não tinha uma ocupação. Cansados do estresse paulistano e de volta para Canudos, em 2008, com quatro filhos, ela passou anos difíceis até ser contemplada com os reservatórios.

A cisterna-calçadão tem capacidade para 52 mil litros de água. - Acervo ASA - Acervo ASA
A cisterna-calçadão tem capacidade para 52 mil litros de água.
Imagem: Acervo ASA

"Foi muito duro voltar para o sertão e ter que viver à base do candeeiro de novo. Daí, quando o pessoal do instituto chegou, eu comecei a me envolver nas atividades. A cisterna trouxe uma chance. Nos meses secos ainda é duro, mas a vida está melhor agora", diz a agricultora, que chegou a carregar latas d'água na cabeça durante a adolescência — como primogênita, ela precisava ajudar a mãe a criar seus 16 irmãos mais novos.

20 anos de trabalho poupados

Segundo dados do IRPAA, a cisterna é uma tecnologia simples, barata e pode poupar, em média, 20 anos de trabalho de uma camponesa. "Milhares de mulheres ainda perdem um terço da vida carregando água no sertão, que é um trabalho sem rendimento, sem sentido algum. Trata-se de uma população que poderia dedicar-se a outras atividades produtivas se tivesse uma cisterna", explica José Moacir dos Santos, presidente da ONG. Com 1,3 milhão de cisternas construídas, o semiárido brasileiro ainda vive um déficit de 350 mil delas.

Tanque longo e estreito no formato de uma trincheira, o barreiro-trincheira tem capacidade para armazenar 500 mil litros de água. - Acervo IRPAA - Acervo IRPAA
Tanque longo e estreito no formato de uma trincheira, o barreiro-trincheira tem capacidade para armazenar 500 mil litros de água.
Imagem: Acervo IRPAA

Além da assessoria às comunidades, o IRPAA, com 76 funcionários e atuante por todo o Nordeste, mantém um centro rural de treinamento de estudantes da área agrícola. O local é aberto à visitação e apresenta cerca de 50 tecnologias de produção e sobrevivência para o semiárido, algumas desenvolvidas pelas próprias comunidades com base no conhecimento tradicional. Maria não estudou por lá, mas sempre aproveita as rodas de aprendizagem que a ONG promove na região. Hoje, com 55 anos, está animada à frente de várias iniciativas. "Eu gosto mais de trabalhar para a comunidade do que para mim", diz, com um sorriso no rosto.

Da educação à memória, uma agenda de transformação

Atualmente, Maria organiza a feira anual da agricultura familiar, coordena a Formação de Mulheres de Fundo de Pasto para educação de lideranças femininas sobre direitos e, ainda, integra a equipe organizadora da Romaria de Canudos que, neste ano, acontece de 5 a 9 de outubro, resgatando a memória de um dos massacres mais violentos da história brasileira.

Em sua rotina, a agricultora também faz visitas às comunidades para transmitir seu conhecimento sobre a Caatinga às futuras gerações, trabalho mais do que necessário num bioma que, apesar de receber menor atenção, até o ano passado já havia perdido metade de sua vegetação.