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Barão do café na quebrada? Jovem quer levar café gourmet à periferia

O empreendedor Renan Millá fazendo o que mais gosta: levar café para a sua comunidade. - Arquivo pessoal/Renan Millá
O empreendedor Renan Millá fazendo o que mais gosta: levar café para a sua comunidade. Imagem: Arquivo pessoal/Renan Millá

Lucas Veloso

Colaboração para Ecoa, em São Paulo (SP)

21/03/2023 06h00

Já há alguns anos Renan Millá, 28, tinha vontade de criar um negócio. Em novembro de 2022, o jovem deu vida ao Café do Millá, empreendimento localizado em Guaianases, extremo leste da capital paulista, e que tem a ambição de popularizar a versão gourmet da bebida na periferia de São Paulo.

Com móveis, uma bancada de tijolos e alguns bancos para sentar, o local recebe bem os clientes, mas é no bate-papo informal que está um dos ingredientes que fazem do Café do Millá um espaço agradável.

Nascido e crescido longe do centro da cidade, Renan acredita que o Brasil elitizou o café. Com seu trabalho, ele quer colaborar para que esse gosto também esteja no paladar das pessoas mais pobres. "Entendi que eu poderia apresentar de forma diferente essa cultura que sempre foi nossa, mas que em algum momento foi interpretada de forma elitista, como vemos hoje em dia", diz.

Tornar as cafeterias mais acessíveis dentro da quebrada. Foi isso que Renan teve em mente com seu negócio, que, ao oferecer uma nova experiência com o café, traz à tona o lado familiar da bebida que, na quebrada, serve de combustível para muitos moradores no café da manhã e após o almoço.

Fortalecer o vínculo entre o morador da quebrada e o café, bebida muitas vezes associada à elite, é um dos objetivos do Café do Millá - Arquivo pessoal/Renan Millá - Arquivo pessoal/Renan Millá
Fortalecer o vínculo entre o morador da quebrada e o café, bebida muitas vezes associada à elite, é um dos objetivos do Café do Millá
Imagem: Arquivo pessoal/Renan Millá

"A identidade da cafeteria é algo que pode ser acessado por todos, e a empresa tem produtos que atendem a diferentes gostos e preferências, desde algo mais refinado até algo mais simples", completa. "A qualidade dos produtos não está relacionada com o maquinário ou a estrutura física, mas sim com o cuidado na seleção e preparação dos ingredientes", diz o empreendedor.

'Não tinha um preto no evento de café'

Uma das pautas mais comuns na boca de Renan é a falta de pessoas pobres e negras no mercado do café, um grão que tem suas origens no continente africano. "Lembro de um evento em que fui buscar conhecimento, mas entrei lá e me senti mal. Não tinha um preto lá, cara. Não tinha ninguém da quebrada dentro daquele ambiente", lembra. Ao olhar para o lado, ele teve a percepção de que todos ali eram da mesma família. Foi quando, literalmente, pensou: "Não, mano. Isso aqui não me representa".

Segundo Renan, a indústria de café se vende como fina e elitista, o que gera consequências, como a falta de apelo para pessoas de baixa renda. Quando olhamos a história do Brasil, aliás, podemos entender melhor as causas desse processo.

Mãos negras, dinheiro branco

No país, o café foi, por muitos séculos, uma das bases da agricultura. Desde o século 18, o Brasil ativou sua economia por meio da exportação do alimento, da época colonial, passando pelo império até o século 20, com a República Velha. As famílias que atuavam diretamente com este mercado se tornaram elites e acumularam riquezas por décadas.

Hoje, apesar de ter uma população negra em torno de 56%, números do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que só 8% das propriedades agrícolas são lideradas por pessoas negras no país, sendo que os escravizados eram parte crucial do cultivo de café. De limpar os terrenos a colher o grão, eles estavam envolvidos em todo o processo, mas a riqueza gerada ia para outras mãos.

Café bem servido

Em Ermelino Matarazzo, zona leste da cidade, o Café Quintal de Casa é outro exemplo de cafeteria engajada na popularização do grão. Comandada pela empreendedora Renata Pereira Santos, 50, o trabalho começa logo nas propagandas do café, pensadas para o bairro. "Nas nossas redes sempre valorizamos o bairro e a periferia. É proposital", afirma.

Ela e o marido tocam o negócio desde 2017, quando ficou desempregada na área de TI. Os dois juntaram presentes de casamento às suas habilidades pessoais e limparam o quintal para começar o negócio em prol da popularização do café na periferia. Um dos objetivos iniciais era oferecer um preço acessível à população, diferentemente de cafeterias tradicionais.

Rodeado de plantas, o Café Quintal de Casa dispõe de um ambiente aconchegante para cativar os moradores do bairro - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Rodeado de plantas, o Café Quintal de Casa dispõe de um ambiente aconchegante para cativar os moradores do bairro
Imagem: Reprodução/Instagram

Ao ver o negócio tomar forma, a comunidade se sente valorizada e com uma maior autoestima, lembra Renata. "É comum que pessoas de outros bairros venham ao café, o que mostra que ele está se tornando um ponto de encontro e referência não só para a comunidade local, mas para a cidade como um todo", acrescenta.

"É gratificante ver como o café está sendo bem recebido pelas pessoas e fazendo a diferença na região", diz Renata.