Ouro Preto enfrenta multinacional por direito à água: 'É tipo Bacurau'
O que a comunidade da Chapada de Lavras Novas, em Ouro Preto, Minas Gerais, viu naquele dia 8 de março foi horripilante. Em vez de água limpa, pura, a caixa d'água estava coberta por um lamaçal com um cheiro de cloro que beirava o insuportável. Até peixe viram por lá.
A água que saía da torneira era marrom, imprópria até para lavar roupa e tomar banho e para beber. Foi por isso que os moradores decidiram fazer um mutirão, como sempre fizeram, para realizar a limpeza da caixa d'água.
A função, contudo, desde 2020, não era deles. Em janeiro daquele ano, a responsabilidade pelo saneamento básico de toda Ouro Preto saiu das mãos do Estado e passou para a iniciativa privada, mais especificamente para a Saneouro, um consórcio que envolve o quinto maior conglomerado empresarial da Coreia do Sul.
A empresa só chegou à Chapada para limpar a caixa d'água dois dias depois da ação dos moradores. "Não precisa limpar, a gente já fez isso", informou Ana Conceição Guimarães, a Preta, liderança comunitária, aos trabalhadores da Saneouro
Segundo os moradores, a empresa fez um boletim de ocorrência contra a comunidade alegando invasão de propriedade privada. A empresa afirmou à reportagem "que tem um programa de monitoramento das atividades de limpeza e desinfecção de todos os reservatórios do município, que só podem ser executadas por equipes técnicas. Por isso, essas atividades só podem ser feitas pela própria Saneouro".
Esse, contudo, não foi o único e nem seria o último imbróglio envolvendo a empresa e a comunidade.
"Com a Preta o bicho pega"
A Chapada é uma comunidade pequena. Cerca de 80 habitantes vivem entre serras e cachoeiras em uma das cidades turísticas mais visitadas do país. Só que, apesar do tamanho, a comunidade é muito organizada.
"Com a Preta da Chapada o bicho pega", diz Luiz Carlos Teixeira, integrante da Força Associativa dos Moradores de Ouro Preto.
Quando souberam que a Saneouro estava pronta para chegar à comunidade, a mobilização começou. "É tipo um Bacurau", definiu a moradora Julia Moyses fazendo referência ao filme brasileiro "Bacurau", lançado em 2019.
"Nós procuramos a empresa e marcamos uma reunião. Não foram eles que entraram em contato com a gente, fizemos isso porque estávamos indignados", conta Sandra Aparecida Ferreira Guimarães, presidenta da Associação de Moradores da Chapada.
A indignação era com a possível instalação de hidrômetros nas casas dos moradores. Os aparelhos são responsáveis por medir o gasto de água em cada residência, o que não acontecia em Ouro Preto.
Antes da chegada da empresa, a água era de uso público irrestrito e apenas uma taxa de R$ 22 era cobrada das moradias e R$ 32,97 eram cobrados de estabelecimentos comerciais.
Mas a Chapada de Lavras Novas não é contra a cobrança em si. O que indignou Sandra e outros moradores foi a cobrança de uma taxa de esgoto. "Aqui na comunidade não tem tratamento de esgoto, cada um tem uma fossa em casa", explica. A empresa afirmou à reportagem que trata água de menos de 0,8% da população localizada no Distrito de São Bartolomeu, onde fica a Chapada.
Na reunião realizada ainda em maio de 2021, Evaristo Bellini, representante da empresa, propôs levar à diretoria da Saneouro a demanda da comunidade: suspender a instalação de hidrômetros até o conserto do encanamento, outro problema registrado pelos moradores.
De acordo com a empresa, "a Saneouro enviou o estudo para a liderança local, que não se manifestou". Além disso, a empresa disse à reportagem que "ainda neste semestre, executará o plano que inclui a substituição cerca de mil metros de rede de água, a revitalização do reservatório e a padronização das ligações de água".
Desde então Sandra não tem pago pela água, mas o que sai de sua torneira ainda é um problema.
Meus três filhos passaram mal. Os levei ao médico e ele disse que era por causa da contaminação da água. Ainda falou que mais pessoas na cidade de Ouro Preto estavam indo lá da mesma forma e que era tudo por causa da água.
Sandra Aparecida Ferreira Guimarães, presidenta da Associação de Moradores da Chapada
Os danos à saúde que o excesso de cloro na água pode causar
- maior risco de doenças cardiovasculares;
- risco elevado de desenvolvimento de cânceres na região dos rins, bexiga e outras vias urinárias;
- risco de desenvolvimento de bronquite e asma;
- irritações de pele e queda na qualidade dos fios de cabelos e unhas;
- irritação respiratória grave;
- desenvolvimento de eczema, doença de pele caracterizada por coceiras, ressecamento e elevação de temperatura da pele;
- risco de desenvolver problemas na tireoide;
- queimaduras na boca, garganta, esôfago e estômago;
- sensação de náuseas e indigestão.
fonte: bbfiltracao.com.br
A mobilização dos moradores chega ao Estado
"Antes da Saneouro, o serviço era ruim também, mas porque não tinha investimento público, só que agora está a mesma coisa ou pior". A fala de Luiz Carlos Teixeira ecoa pela cidade de Ouro Preto.
A mobilização popular contra a empresa não é exclusividade da comunidade da Chapada. Desde que o contrato de concessão do saneamento básico à Saneouro foi assinado, a resistência de Ouro Preto, como pontua Teixeira, começou.
"Não houve uma consulta popular, nenhum tipo de participação da sociedade civil organizada, ninguém foi chamado para ser ouvido. A bronca começou aí", conta.
A justificativa que o então prefeito da cidade Júlio Pimenta usou para conceder à iniciativa privada o tratamento de água e esgoto da cidade foi "que o município não contava com disponibilidade financeira" para investimentos no setor.
Acontece que a luta dos moradores da cidade com protestos, petições assinadas, ação popular na justiça e acampamentos fez com que o poder público ouvisse o que os ouro-pretanos tinham a dizer.
Em 9 de março de 2021 foi protocolado a instauração de uma CPI na câmara de vereadores de Ouro Preto para investigar a concessão. E o resultado foi a conclusão de que houve omissões do poder público no processo e ilícitos durante todo o processo, como a falta de concorrência ampla, o consórcio coreano foi o único a concorrer.
A recomendação dos vereadores foi a anulação da concorrência pública e do contrato de concessão.
Ouro Preto na contramão do mundo
A partir do momento que uma empresa não cumpre com o que foi acordado no contrato, ele pode ser anulado. Esse argumento foi usado por um grupo de trabalho formado por integrantes do poder público e da sociedade civil de Ouro Preto para defender a anulação do contrato com a Saneouro.
Mas se a empresa sai, quem entra? De acordo com o grupo, é possível o poder público voltar a assumir o saneamento básico da cidade. E outras experiências no Brasil e pelo mundo mostram isso.
Uma pesquisa lançada em 2015 contou que, em 15 anos, 235 cidades e cerca de 106 milhões de habitantes retomaram a gestão do tratamento e fornecimento de água das mãos de empresas privadas.
Entre elas, grandes capitais como Berlim, Paris ou Buenos Aires.
Em geral, observamos que as cidades estão voltando atrás porque constatam que as privatizações ou parcerias público-privadas (PPPs) acarretam tarifas muito altas, não cumprem promessas feitas inicialmente e operam com falta de transparência.
Satoko Kishimoto, coordenadora para políticas públicas alternativas no Instituto Transnacional (TNI) e atual prefeita de Tóquio, à BBC Brasil
E esse é o desejo da comunidade. "Não queremos outra concessão não, o que a gente quer é uma remunicipalização e que se discuta a tarifa e que ela caiba no bolso da população", afirmou Luiz Carlos Teixeira durante audiência pública realizada no último 14 de março. A empresa não esteve presente na reunião.
Mesmo com o clamor da população, a conclusão da CPI e os relatórios dos Grupos de Trabalho, a prefeitura da cidade não anulou, até a publicação dessa matéria, o contrato com a Saneouro.
Ouvida pela reportagem, a prefeitura alegou em nota que "o Prefeito Angelo Oswaldo e diversos setores da Prefeitura Municipal, em especial a Procuradoria-geral, além do próprio Ministério Público, promoveram diversos estudos, análises e investigações com o objetivo de apurar as possíveis nulidades do contrato, porém nenhum dos apontamentos trazidos nos referidos procedimentos, na CPI e nos Inquéritos Civis de responsabilidade do Ministério Público, foram capazes de reunir ou identificar circunstâncias capazes de anular o contrato."
Além disso, a prefeitura pontuou que "o relatório da CPI foi avaliado pelo Ministério Público que concluiu não haver ilegalidades que ensejassem a nulidade da concorrência pública em questão ou situações que ensejassem o ajuizamento de ação civil pública".
O ex-prefeito Júlio Pimenta foi procurado pela reportagem mas não respondeu ao nosso contato até a publicação do texto.
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