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Padre 'profeta' enfrentou violência policial e pedia paz em periferia de SP

O padre Jaime Crowe, presidente da ong Sociedade Santos Mártires, encabeçou um abraço na Guarapiranga para alertar os moradores do Jardim Ângela e região da poluição e degradação da represa - Raquel Cunha/Folhapress
O padre Jaime Crowe, presidente da ong Sociedade Santos Mártires, encabeçou um abraço na Guarapiranga para alertar os moradores do Jardim Ângela e região da poluição e degradação da represa Imagem: Raquel Cunha/Folhapress

Lucas Veloso

Colaboração para Ecoa, de São Paulo (SP)

02/04/2023 06h00

Uma das funções dos padres na Igreja Católica é celebrar missas em memória das pessoas que morrem, sendo a de 7º dia uma das mais importantes, o dia que Deus descansou após fazer o mundo, segundo a tradição cristã.

Por 50 anos, na Paróquia Santos Mártires, no Jardim Ângela, zona sul de São Paulo, o padre Jaime Crowe celebrou centenas delas, sempre com mães que o procuravam com o nome dos filhos mortos pela violência do Estado - geralmente a tiros vindos de policiais.

A situação o deixava inconformado. "Essas mães não têm que vir aqui pedir por seus filhos mortos, não tem que colocar nome. Os filhos devem viver", costumava dizer para quem o acompanhava.

E para além das palavras, o seu combate à violência estava nas ações práticas, que duraram até o último 20 de fevereiro, na cidade de Limerick, Irlanda, onde o padre morreu de infarto aos 77 anos.

Padre Jaime Crowe em caminhada pela paz - Sociedade dos Santos Mártires. - Sociedade dos Santos Mártires.
Padre Jaime Crowe em caminhada pela paz
Imagem: Sociedade dos Santos Mártires.

Padre Jaime Crowe: o 'profeta' do Jardim Ângela

Chamado de "profeta" pelos fiéis e moradores da zona sul, Jaime fez por merecer o título. No ano de 1987, ele foi transferido para a cidade de São Paulo, onde fundou a Paróquia Santos Mártires.

Entre as iniciativas criadas por ele na região, está a Caminhada pela Vida e Paz, que, em todo 2 de novembro, Dia de Finados, homenageia as vítimas da violência de Estado. Em 1996, o bairro foi considerado o mais violento do mundo pela Organização das Nações Unidas (ONU).

O padre Jaime foi um agente de mudança na Paróquia Santos Mártires, tendo denunciado violações dos direitos humanos e a violência que afetou muitos jovens da região por décadas, e segue até hoje. A comunidade paroquial tornou-se uma referência, como na assistência social e empreendedorismo.

Jaime foi responsável pela fundação da Sociedade Santos Mártires, uma organização que tem como objetivo atender às necessidades da população do Jardim Ângela. O padre ainda liderou várias iniciativas, como passeatas e outras atividades, para pressionar as autoridades públicas a melhorarem a região.

Hoje, cerca de 10 mil pessoas são beneficiadas pelos muitos programas oferecidos pela organização, que incluem creches e atendimento psicológico para mulheres vítimas de violência.

Seta vermelha indica Jaime Crowe ainda criança na Irlanda - Sociedade dos Santos Mártires. - Sociedade dos Santos Mártires.
Seta vermelha indica Jaime Crowe ainda criança na Irlanda
Imagem: Sociedade dos Santos Mártires.

'Um símbolo de luta por direitos humanos no Brasil'

Humildade, acolhida e a habilidade de dialogar com pessoas de diferentes crenças e convicções são algumas qualidades lembradas quando o nome do padre é citado.

Seu trabalho foi amplamente reconhecido por diversas organizações da sociedade civil, e isso se traduziu em prêmios em reconhecimento à sua contribuição para a sociedade, como a redução da violência no Jardim Ângela por meio de transformações e melhorias na região.

Maria Gorete Marques de Jesus é pesquisadora do NEV USP (Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo) e também professora do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da entidade.

Para ela, com certeza, Jaime deixou um legado, não apenas para o território em que ele trabalhou, mas também para outras regiões do país. "Ele é, sem dúvida, um símbolo de luta pelos direitos humanos no Brasil", resume a especialista.

Padre Jaime Crowe - Sociedade dos Santos Mártires. - Sociedade dos Santos Mártires.
Padre Jaime Crowe
Imagem: Sociedade dos Santos Mártires.

Ela lembra que, nos anos 90, a região da zona sul era uma das mais violentas, com altos índices de letalidade e ocorrências frequentes de chacinas, o que se tornou uma realidade diária.

"A busca pela paz e pelos direitos foi uma bandeira importante para a mobilização liderada pelo padre na comunidade. Mais do que simplesmente realizar ações, ele motivava as pessoas da comunidade a se mobilizarem e agirem em busca desses objetivos, da paz".

Em 2005, o padre foi premiado com o Prêmio USP de Direitos Humanos. Já em2016, a Prefeitura de São Paulo o homenageou com o Prêmio de Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns.

Padre foi enviado ao Brasil para 'combater o comunismo', mas se deparou com problemas reais

Hoje, Carlos Alberto de Souza Junior é o responsável pela comunicação da organização Santos Mártires, criada pelo padre. Morador da região, conheceu Jaime ao ser atendido por projetos sociais pensados pelo religioso. Juntar as pessoas em prol das causas sociais é um legado deixado pelo "profeta", na opinião de Carlos.

"Amor e paz são princípios que devem ser seguidos", destaca Carlos. Para ele, o padre também colocou a Igreja Católica em desconforto ao pregar os Direitos Humanos a partir dos ensinamentos da Bíblia quando, na verdade, a Igreja de Roma o enviou ao Brasil para combater o comunismo no país.

Padre Jaime Crowe - Sociedade dos Santos Mártires. - Sociedade dos Santos Mártires.
Padre Jaime Crowe
Imagem: Sociedade dos Santos Mártires.

No Brasil, "ele percebeu que o maior problema não eram as ideias comunistas, que nem existiu aqui, mas a fome, a desigualdade e a displicência do Estado com a população que vive nas periferias", como conta Carlos.

Semanas depois da morte do padre, a frase "gente simples, fazendo coisas simples em lugares de pouca importância realizam grandes transformações" ainda ecoa nas ações da comunidade que o padre deixou. Na zona sul, o farol que ilumina a busca por justiça, e o empenho contra a violência que destrói famílias ainda se chama Jaime Crowe.