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'Não tinha homem?' Cacique, ela enfrenta ameaças de morte e usina nuclear

Jorge Pankanrá
Imagem: Jorge Pankanrá

Adriana Amâncio

Colaboração para Ecoa, no Recife (PE)

04/04/2023 06h00

'E não tinha homem na aldeia, não?' Esse é um dos questionamentos ouvidos com frequência por Lucélia Pankará, a primeira cacique mulher da aldeia de mesmo nome e uma das seis caciques em todo estado de Pernambuco. A líder indígena costuma ouvir essa pergunta ao se apresentar em eventos públicos, com a presença de não indígenas. Há 12 anos, Lucélia se depara com esses e outros estranhamentos. "Até a gramática foi construída numa época tão machista que não tem cacica, só tem cacique, no masculino", diz ela a Ecoa.

Lucélia não teve tempo para ir se preparando para a missão. Ela acabou levada ao posto de cacique depois que seu povo decidiu retomar a área da Aldeia Serrote, localizada em Itacuruba, a 466 km de Recife (PE), onde vivia e de onde tinha saído décadas antes por conta da construção de uma barragem. Precisavam de uma liderança e por ser descendente de membros da linha pankará ela acabou escolhida, e seu nome foi confirmado em um ritual espiritual.

Nos anos 1980, ela e os seus parentes haviam sido removidos da região da aldeia para uma área urbana em função da construção da Barragem Luiz Gonzaga, às margens do Rio São Francisco. Na ocasião, o município original, incluindo as suas áreas urbanas e rurais, foi inundado pelas águas do imenso reservatório.

Vivendo na área urbana, a cacique e os parentes se sentiram como 'peixes fora d'água'. Era impossível vivenciar na cidade os costumes e práticas indígenas, e as famílias acabaram se separando se desmobilizando. E assim foi por 30 anos, até que em 1997 os pankarás decidiram voltar à Aldeia Serrote.

Uma usina nuclear perto da aldeia

Em meio à mobilização, uma vez que os mais velhos já não se encontravam mais vivos e que a retomada demandava centralizar a posição do povo em uma só voz e cumprir agendas em órgãos e eventos públicos, o grupo resolveu consultar os encantados para eleger um novo líder para a aldeia. Em um ritual espiritual no qual os líderes indígenas se comunicam com os seus ancestrais, o nome de Lucélia Pankará foi confirmado.

Lucélia Pankará - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Em um ritual espiritual, o nome de Lucélia, que é descendente de membros da linha pankará, foi confirmado como cacique
Imagem: Arquivo pessoal

Sob o seu comando, estão, desde então, cerca de 300 famílias, aproximadamente 1.500 pessoas. Para guiar tanta gente, ela afirma que usa "a sabedoria dos encantados". Assim como outras mulheres não indígenas e das áreas urbanas, ela se divide entre os cuidados com a família maior, com a gestão da Escola Indígena Josefa Alice, localizada no território, a própria família e o casamento com o também líder indígena Jorge Pankará. Lucélia é formada em pedagogia e atua na área de educação, gerindo a escola da comunidade.

Logo após a retomada do território, veio outro grande desafio. O seu povo soube que havia um projeto para a construção da Usina Nuclear de Itacuruba, localizada a 466 km de Recife. O projeto estava destinado a ser implantado a 4 km da aldeia onde vivem os pankarás. Atualmente, este projeto está parado e aguarda decisão do governo federal para ser implementado ou vetado.

Um dos pontos questionados pelos pankarás refere-se à necessidade do uso da água do Rio São Francisco para resfriar os seis reatores previstos. Após esse resfriamento, a água sofre uma elevação de 2 Cº, o que inviabilizaria, por exemplo, a sobrevivência dos peixes, principal fonte de proteína dos indígenas.

Ameaças de morte

"O maior desafio da minha vida [como cacique] foi quando a gente foi dizer não à construção da usina nuclear. Por causa disso, eu comecei a receber ameaças, familiares meus receberam ligações dizendo que 'ou a gente parava ou eu ia amanhecer com a boca cheia de formiga", relembra. A mobilização de Lucélia e de outras lideranças contrárias à energia nuclear venceu a primeira batalha. O projeto da Usina não foi aprovado na Assembleia Legislativa de Pernambuco e agora está à espera de decisão do governo federal.

Com medo das ameaças, a cacique buscou ajuda junto ao Ministério Público Federal e foi incluída no Programa de Defensores e Defensoras de Direitos Humanos. "Eles me ofereceram entrar para o Provita, [Programa Federal de Assistência e Proteção de Vítimas e Testemunhas Ameaçadas do Governo Federal] e deixar o meu território, mudar de nome, abandonar o meu povo", recorda.

Lucélia Pankará - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Há 12 anos Lucélia Pankará está à frente de seu povo e enfrenta questionamentos por ser mulher
Imagem: Arquivo pessoal

Eu disse que para deixar o meu povo e morar em outro país, deixar de existir como Lucélia, que não é só cacique, eu não queria.

Lucélia Pankará, cacique

Então lhe ofereceram uma opção diferente, acionar o programa e a polícia ser chamada quando houver um problema. "A minha casa parece um 'big brother', toda rodeada de câmera que o programa colocou. Eu sou gestora e a escola onde trabalho é toda monitorada. Você perde a liberdade porque tem que andar observando tudo, pois não sabe de onde pode vir o ataque para tirar a sua vida. Eles acreditam que derrubando a liderança, vão poder dominar o meu povo. Eu acho que o momento crucial dessa minha história foi esse", relata.

Inspirando novas gerações

Em pouco mais de uma década liderando a aldeia, Lucélia afirma ter tido muitos aprendizados. "A lição que eu trago de tudo isso é que, nós, mulheres, somos fortes, sim! Somos capazes de lutar pela garantia de direitos dos nossos povos. Todos os dias eu acordo com a certeza de que vou trabalhar, mas não estou sozinha, tenho pessoas ao meu lado que acreditam em mim", conclui.

Mais do que pessoas que acreditam, na aldeia, há pessoas que se inspiram em Lucélia. É o caso da jovem indígena pankará Anielly Cabral, de 23 anos, coordenadora pedagógica da escola indígenda do território. "A cacique Lucélia é sinônimo de força! A fala dela inspira confiança," define.

Lucélia Pankará - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Quando Anielly Cabral nasceu, Lucélia já era a sua cacique e é nela que ela se inspira todos os dias
Imagem: Arquivo pessoal

No ano em que Anielly nasceu, Lucélia se tornou cacique do povo pankará. Ele cresceu tendo como líder do seu território uma caique mulher. Essa presença, revela a jovem, surtiu efeitos na construção do seu caráter e personalidade. "É uma mulher inspiradora, que luta para ajudar todos que precisam. Ela sempre tem uma resposta. A força dela inspira muito, principalmente as mulheres. Aonde ela vai, sempre leva três, quatro mulheres."

Acompanhando por anos a atuação de Lucélia como líder indígena e como gestora escolar, a jovem pankará se sentiu motivada a enveredar pelos caminhos da educação. Em 2020, começou a trabalhar como professora na Escola Indígena Josefa Alice, nome dado em homenagem à avó de Lucélia. Dois anos depois, ela já estava atuando como coordenadora pedagógica, liderando uma equipe com profissionais de ampla experiência.

Se hoje sou quem sou, estou onde estou, é graças a ela. Ela fez com que eu me tornasse uma pessoa melhor. Todos os dias, ela está junto comigo, me auxiliando, me ensinando, conversando comigo.

Anielly Cabral, coordenadora pedagógica

Anielly, que é pós-graduanda em gestão escolar, sonha em concluir um mestrado. Ela afirma que a cacique Pankará tem tido um papel decisivo em fazê-la acreditar e incentivá-la a tornar esse sonho possível. "Ela influenciou bastante nesta questão, pois ela costuma dizer: 'procurem ser pessoas melhores, procurem estudar porque as oportunidades se abrem quando você tem conhecimento."