Tenente usa psicodélicos para combater violência policial nos EUA
Policial durante o dia, terapeuta psicodélico à noite. O cotidiano do norte-americano Sarko Gergerian é, no mínimo, incomum. E nos dois expedientes, a missão é audaciosa: curar traumas, construir resiliência e ajudar a construir um policiamento mais humanizado.
Sua arma atual é a cetamina, único psicodélico autorizado para uso em tratamentos de depressão nos Estados Unidos. Gergerian faz parte do movimento que luta pela liberação de drogas psicodélicas para uso médico.
Agora, o "policial - terapeuta" se prepara para realizar atendimentos com o MDMA (metilenodioximetanfetamina), droga psicodélica que na década de 1980 ficou conhecida como ecstasy. O sinal verde do FDA (a Anvisa dos EUA) deve sair até 2024. "Quero levar a terapia psicodélica para a polícia, porque o trauma é um grande problema entre os policiais", disse Sarko em entrevista exclusiva a Ecoa.
É importante lembrar que o uso psiquiátrico do MDMA acontece em situações terapêuticas com supervisão e indicação médica. Esses estudos costumam excluir pacientes com distúrbios psiquiátricos graves, como transtorno bipolar e esquizofrenia, e pacientes com doenças cardiovasculares.
Uma polícia menos violenta
Durante o dia, como tenente na polícia de Winthrop, em Massachusetts, sua abordagem nas ruas também tem contornos terapêuticos, e é bastante focada na questão das drogas.
Gergerian é um dos fundadores de uma metodologia de policiamento comunitário orientada para a recuperação de indivíduos. Chamado "Community and Law Enforcement Assisted Recovery" ("Recuperação Assistida pela Comunidade e pela Lei", em tradução livre para o português), o programa busca estabelecer uma relação de confiança entre a polícia e a comunidade local.
O policial lidera uma equipe multidisciplinar na Secretaria de Segurança e Saúde Pública da cidade, encarregada de realizar intervenções com o objetivo de prevenir prisões e mortes. "Nós protegemos e servimos as pessoas como guardiões", diz.
Junto à comunidade, os agentes realizam um monitoramento constante e preventivo para identificar problemas locais de abuso de drogas ilícitas e álcool. O objetivo, segundo ele, é acolher pessoas em tratamentos terapêuticos e evitar que casos desse tipo se tornem ocorrências policiais.
Na opinião de Gergerian, no ranking dos problemas que causa, o álcool é uma das piores drogas. "E apesar de contribuir para gerações de trauma familiar, agressão sexual, acidentes de carro e doenças, está disponível em todos os lugares.
'Saúde pública é segurança pública e segurança pública é saúde pública
O modelo de trabalho que Gergerian ajudou a criar na polícia de Winthrop está alinhada com a promessa "One-Mind" da IACP (Associação Internacional de Delegados, em português).
Criada em 1893, a instituição sediada em Alexandria, na Virgínia, tem mais de 32 mil membros distribuídos por 170 países e promove ações de educação pelo mundo em torno de um policiamento comprometido com comunidades mais seguras.
A campanha One-Mind busca promover interações bem-sucedidas entre a aplicação da lei e pessoas com transtornos psíquicos ou deficiência intelectual. "Nossos oficiais são treinados em primeiros socorros em saúde mental e em incidentes críticos", conta Gergerian.
Ou seja, para eles, o uso abusivo de substâncias também é um diagnóstico de transtorno mental. "Procuramos tirar esses casos da justiça criminal e levá-las para a saúde pública", explica.
Segundo o tenente de Winthrop, tudo começou com a pergunta "e agora?". A indagação surgia frequentemente em situações de overdose em que ele e seus colegas conseguiam manter a pessoa viva usando naloxone (medicamento usado em casos de intoxicação aguda por opioides). Passado o susto, e agora? O que essa pessoa que precisa urgentemente de ajuda vai fazer?
"Fomos o primeiro departamento de polícia do país a desenvolver uma política de mobilização de equipes de recuperação", conta Gergerian. "Saúde pública é segurança pública e segurança pública é saúde pública."
'Policial - terapeuta' trabalha com cetamina, MDMA e kambô
Foi em uma conferência da IACP, na Flórida, o maior evento para policiais do mundo, que Gergerian conheceu Rick Doblin, o ex-hippie e fundador da Maps (sigla em inglês para "Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos"), organização sem fins lucrativos que há 37 anos vem liderando a retomada das pesquisas psicodélicas no mundo.
Na ocasião, Doblin apresentava os resultados dos ensaios clínicos de fase 2 com MDMA para uma condição mental grave, o Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) - estudo este que atualmente encontra-se na etapa final da fase 3.
Doblin mostrou que 67% dos participantes tiveram remissão sustentada por um período prolongado. Ou seja, para os pesquisadores, os índices de cura ou melhora do Transtorno de Estresse Pós-Traumático após sessões com MDMA eram significativos e precisavam ser olhados com mais atenção.
"Essa foi a estatística que me pegou", diz Gergerian. "No final da apresentação, subi ao palco, me apresentei a ele e perguntei qual seria a melhor maneira de ajudar a levar esse trabalho adiante."
Quando o fundador da Maps descobriu que se tratava de um policial que já administrava terapias com cetamina, ele disse apenas uma coisa: "torne-se um psicoterapeuta de MDMA". Foi o que Gergerian fez.
"Consegui me encaixar em um protocolo de pesquisa sancionado pelo governo federal, onde passei por experiências com o psicodélico. Isso me levou a concluir o componente experiencial do treinamento para terapeuta", conta. Além do preparo para terapia com cetamina e MDMA, o policial também possui formação para uso do "kambô" (Phyllomedusa bicolor), a "vacina do sapo", usada por povos indígenas da Amazônia.
'Me senti abraçado pelo amor'
Experimentar os psicodélicos combinados com a psicoterapia foi parte fundamental no treinamento de Gergerian. "Quando o MDMA fez efeito, me senti abraçado pelo amor". O sentimento foi intensificado por uma profunda gratidão, como descreve o policial.
"Era como se eu estivesse totalmente seguro e cuidado. Isso durou toda a sessão", relembra. Nessa experiência, ele, que tem ascendência armênia, percebeu o quanto sua vida foi moldada pelo trauma transgeracional associado ao genocídio perpetrado pelos turcos contra os povos originários da Armênia, entre 1915 e 1923. "Consegui explorar pensamentos emocionalmente avassaladores sem ser dominado por eles.", diz.
Gergerian aposta que a psicoterapia assistida por MDMA será uma virada de jogo para anos de tratamentos sem resultado na psiquiatria. Ao contrário do tratamento com antidepressivos, por exemplo, em que comprimidos são administrados por tempo indeterminado, com psicodélicos apenas algumas sessões são necessárias. "Ajudará a salvar vidas", resume o policial.
Ele também acredita no poder conciliatório das substâncias. "Abrirão o coração das pessoas para que possamos estabelecer conexão entre grupos tradicionalmente antipáticos uns com os outros."
Logo que o governo aprovar o uso médico do MDMA ele quer iniciar o atendimento para policiais. "A maneira de agir nas ruas precisa mudar, não podemos mais ter joelhos na garganta de civis".
'Policiais morrem mais por suicídio do que em confrontos'
Sarko Gergerian começou a ficar conhecido pelo mundo quando apareceu no episódio sobre MDMA da série "Como Mudar a sua Mente", da Netflix, adaptação do livro homônimo de Michael Pollan (editora Intrínseca). No filme, ele defende que a terapia psicodélica pode ajudar a combater o estresse entre policiais, um problema que, segundo ele, está crescendo.
Na entrevista a Ecoa, Gergerian observa que, em média, um agente passa por mais de duzentos incidentes críticos em sua carreira. Isso pode se tornar um trauma, com consequências fatais. "Policiais morrem mais por suicídio do que em confrontos durante o trabalho."
No início da carreira, há cerca de uma década, ainda como patrulheiro, ele começou a se questionar sobre o modo de atuação da polícia. Não se fazia nada além do tradicional. "Os policiais têm, literalmente, o peso do país nas costas, mais do que ninguém, simbolizam o governo de forma encarnada."
Gergerian percebeu que era necessário mudar.
Proibicionismo é guerra contra pessoas, afirma policial
Nos EUA, os números de pessoas negras presas e mortas por overdose atingiram níveis epidêmicos, alerta Gergerian. Para ele, a questão passa pela campanha proibicionista da guerra às drogas, lançada em 1971 pelo então presidente norte-americano Richard Nixon
Segundo o policial, esse movimento foi profundamente tendencioso e sem base científica. Como uma das consequências, pesquisas com substâncias psicodélicas realizadas há décadas foram interrompidas, impossibilitando os estudos sobre tratamentos.
"Se transformou em uma guerra contra pessoas. A guerra às drogas tornou as pessoas mais violentas, as drogas mais tóxicas e acelerou a morte de mais de 100 mil pessoas por overdose anualmente, só nos Estados Unidos", diz Gergerian.
Mas, para ele, há uma luz no fim do túnel: "Temos pesquisadores conduzindo boa ciência e publicando informações precisas, chegamos a um ponto de virada e os governos terão que atender às demandas cada vez maiores do público por acesso seguro a essas ferramentas de cura."
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