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A falta de educação é a forma mais letal do racismo, diz ialorixá Nivia Luz

Desfile Oyá Criativa, do Instituto Oyá, em Salvador (BA) - Lucas Assis/Divulgação
Desfile Oyá Criativa, do Instituto Oyá, em Salvador (BA) Imagem: Lucas Assis/Divulgação

Adriana Terra

Colaboração para Ecoa, em São Paulo (SP)

09/04/2023 06h00

Nos anos 1980, quando chegou em Pirajá, na Cidade Baixa de Salvador (BA), Anísia da Rocha Pitta e Silva, a Mãe Santinha, encontrou um terreno onde as pessoas jogavam lixo. Em vez de degradação, a ialorixá viu ali uma "oportunidade de futuro", conta sua neta: comprou o lote, iniciou a retirada de resíduos e logo percebeu a importância do fortalecimento do solo, já que gostava de plantar. A primeira ação comunitária que moveu foi uma conversa sobre descarte em um território de enorme biodiversidade, vizinho ao Parque São Bartolomeu.

Assim, plantava as sementes do Instituto Oyá, organização que nasce em 1998 no espaço do terreiro de candomblé Ilê Asé Oyá. "[Nesse processo] ela vai entendendo algo profundo que é essa relação com a educação em um bairro complexo como o Pirajá", diz Nivia Luz, 39, turismóloga. Foi Nivia que, a partir de 2015, com a morte da avó Mãe Santinha, se tornou diretora do instituto e ialorixá da casa.

Nivia cresceu no bairro e entende tanto a sua riqueza - ambiental, cultural - quanto os seus problemas - falta de oportunidade de trabalho e de estudo.

"Pirajá também tem importância histórica grande: aqui se define a Independência da Bahia. Mas o bairro está relegado a um lugar de esquecimento porque não está na "zona nobre" da cidade", diz ela. Na infância e adolescência, Mãe Santinha a ensinava a preparar o corpo para sair de casa, fazendo uma oração. Na época, o medo da menina era de ver alguém morto na rua, dada a violência na região.

A ousadia de pensar um futuro

1 - Jefferson Lima - Jefferson Lima
Nivia Luz, ialorixá do Ilê Asé Oyá
Imagem: Jefferson Lima

"Minha avó dizia que um dia veria Pirajá fora das páginas policiais, e viu." De ações culturais, o instituto - de acesso gratuito - foi se estruturando em eixos. Um deles é o Oyá Educa, que recebe crianças a partir de sete anos e tem curso pré-vestibular. "O programa pensa o desenvolvimento cognitivo e o futuro, o que é uma ousadia. A falta de educação é a maneira mais letal de o Estado matar o jovem negro. Quando você fala de um jovem assassinado ou que perde a sua liberdade, também fala da falta de educação", diz Nivia. A iniciativa, pela qual já passaram oito mil alunos, serve como um complemento à rede pública de ensino.

Elegância coletiva

3 - Lucas Assis/Divulgação - Lucas Assis/Divulgação
Desfile Oyá Criativa
Imagem: Lucas Assis/Divulgação

Outro braço do instituto é o Oyá Criativa, esse mais novo, mas também legado de Mãe Santinha. "Minha avó bordava [usando a técnica do] richelieu e gostava de linho. E a roupa que ela usava em um congresso era a mesma que vestiria na feira. Chamava a atenção aquela elegância, mas também a forma como ela via a comunidade a ponto de achar importante estar arrumada ali", conta Nivia.

Do apreço pelo fazer artesanal e pelos tecidos, Mãe Santinha organizou aulas de corte, costura e bordado. Entendia a máquina de costura como uma herança familiar para muitas mulheres, além de um ganha-pão. "A moda já estava ali, a gente é que não entendia isso enquanto discurso de moda", reflete a neta.

O Oyá Criativa trabalha esse conhecimento com vários mercados e formações. Em junho, alunas entre 40 e 70 anos, formadas pelo curso que abarca de design a empreendedorismo, lançam uma coleção de bolsas de luxo inspirada na arquitetura do barracão do Ilê Asé Oyá, desenhado por Lina Bo Bardi nos anos 1980. Em 2022, o Museu da Arte Moderna da Bahia (MAM) abrigou desfile, oficina de estampa, dança e mais produções do Oyá em uma residência.

O Oyá é um museu também. Está dentro de um espaço de terreiro, tendo ali a imaterialidade e a materialidade. A gente tem um barracão a partir de uma planta da Lina Bo Bardi, e as crianças estão o tempo todo brincando, flertando com a arquitetura. Isso tudo é muito forte e importante. E dentro da periferia, tendo como pano de fundo a floresta. Nivia Luz

Educação antirracista e multiplicadora

2 - Evandro Cruz/Divulgação - Evandro Cruz/Divulgação
Uma aula do projeto Oyá Criativa, do Instituto Oyá, em Salvador (BA)
Imagem: Evandro Cruz/Divulgação

"O professor Muniz Sodré fala sobre uma educação que, para dar certo, precisa de afeto. Minha avó contribuiu para um processo tão eficiente que só acontece ao injetar amor", afirma Nivia. A ialorixá e turismóloga conta que, apesar da atuação da avó, o instituto foi fundado com a premissa da laicidade. "Mãe Santinha entendia que para a educação e o acolhimento há temas que, quando você impõe, delimita."

Mesmo com essa postura, o instituto não se viu livre de sofrer racismo. "Já tivemos casos de mães que foram punidas em seus espaços religiosos porque insistiam em manter os filhos aqui.", diz Nivia.

Outro aspecto fundamental do espaço, diz a ialorixá, é enxergar as pessoas, que passam por ali, como parte da continuidade do Oyá. "O nosso pré-vestibular foi um projeto sonhado por um jovem que entrou no instituto ainda criança", conta. "Eu associo o Oyá a uma grande árvore, muito generosa e que fincou raízes profundas. Às vezes você se depara ali com um indivíduo dando uma guinada na vida que você enche o peito, sabe?'