Alagados: Hit nos anos 80, favela de Salvador inova com cozinha solidária
"Todo dia o sol da manhã vem e lhes desafia. Traz, do sonho pro mundo, quem já não o queria. Palafitas, trapiches, farrapos, filhos da mesma agonia". Na canção 'Alagados', um de seus hits nos anos 80, a banda Paralamas do Sucesso cantou o drama social de favelas pelo Brasil. Mas poucos conhecem a história de Alagados, região de Salvador (BA) que dá nome à música, e que hoje persiste graças a iniciativas pioneiras unindo a comunidade.
Da época em que lavava, manualmente, oito trouxas de roupas por semana, Zulmira Pereira, 64, prefere não falar muito. As mãos com calo são reflexo do trabalho como lavadeira, ocupação que herdou de sua mãe. Hoje coordenadora de um projeto de cozinha solidária, Zulmira relembra a difícil jornada no ramo alimentício, compartilhada com suas 20 parceiras.
Num espaço pequeno, com poucos equipamentos adequados, elas preparavam a feijoada que, em seguida, seria vendida em um semáforo. Zulmira mora no Uruguai, um dos 14 bairros que compõem a Península de Itapagipe, na capital baiana. O território abrigou os Alagados, ocupação de palafitas que já foi considerada a maior favela do Brasil.
Construídas em cima de estacas, fincadas sob o mangue e a maré, as moradias formavam parte da paisagem na Enseada dos Tainheiros. Hoje as palafitas não estão mais por lá, mas os desafios sociais e ambientais persistem na comunidade.
Nesse cenário de vulnerabilidade, Zulmira decidiu que, além de um novo local de trabalho, precisava de suporte técnico e apoio em sua luta por direitos. Foi quando ela conheceu o Centro de Arte e Meio Ambiente (CAMA).
Mudar o mundo a partir do próprio quintal
Atuando na Península desde 1995, a organização conta com diversos projetos socioambientais, que vão do fortalecimento de hortas urbanas ao beneficiamento de papel.
"É olhando as necessidades que você busca mudar o mundo a partir do seu local. Esse é um território que nos dá régua e compasso para pensar as questões socioambientais e de moradia, no desenvolvimento de geração de trabalho e renda", explica Ana Carine Nascimento, coordenadora do CAMA. Por meio da arte e da cultura, a instituição nasceu com a missão de provocar a comunidade a refletir sobre as condições de vida e como modificá-las.
Numa época em que a crise climática e os desafios ambientais ainda eram pouco discutidos, o CAMA foi pioneiro ao incentivar a formação de uma das primeiras cooperativas de catadores do estado da Bahia, a Cooperativa de Coleta Seletiva, Processamento de Plástico e Proteção Ambiental (Camapet).
"Percebemos que era possível criar meios para que homens e mulheres não precisassem ir ao mar retirar os resíduos nem ficassem abrindo sacos de lixo para retirar a possibilidade de sustento", explica Joilson Santana, coordenador da organização.
As ações de gestão e gerenciamento de resíduos sólidos com a inclusão dos catadores sempre foram reivindicações do grupo, mesmo antes da Política Nacional de Resíduos Sólidos, estabelecida apenas em 2010.
Sustentabilidade na maior festa de rua do planeta
Atualmente, o CAMA oferece assessoramento técnico para cerca de 30 cooperativas de catadores de materiais recicláveis no estado. Desde 2004, com o desenvolvimento do projeto Eco Folia, realizado no carnaval junto a outras organizações, mais de 23 mil trabalhadores foram beneficiados. Além de melhorar as condições de trabalho dos catadores na maior festa de rua do planeta, a iniciativa envolve e impacta diferentes cadeias produtivas.
Somente neste ano, por exemplo, o grupo Costura Solidária Sustentável já produziu 4 mil fardamentos para os trabalhadores envolvidos na iniciativa, com mochilas confeccionadas a partir do reaproveitamento de mil metros de lonas vinílicas (banners e faixas).
Roquelina da Silva, 63, integra o grupo de costureiras egressas de uma capacitação ofertada pelo CAMA. Junto com as companheiras, no bairro, ela gerencia um espaço colaborativo para vendas de bolsas, mochilas e nécessaires. "Meu trabalho é fazer um bom atendimento, falar sobre o meio ambiente, o porquê de utilizarmos o banner, para as pessoas saberem por que estão comprando aquela sacola", relata.
Além da inclusão socioeconômica, a instituição está empenhada em outras frentes de atuação, como o Observatório do Racismo Ambiental, além de projetos para o protagonismo feminino e o fortalecimento da sociedade civil organizada.
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