Dentro e fora da cadeia, projeto dá nova chance a 'invisíveis' na costura
Ao longo dos nove meses em que esteve presa, a paulistana Shirley Teixeira de Oliveira, 25, se via atormentada por uma questão: como superar o preconceito da detenção e conseguir um novo emprego?
Após conseguir a liberdade, ela conheceu o Movimento Eu Visto O Bem, iniciativa que emprega, na costura, mulheres egressas ou que ainda estão dentro do sistema penitenciário de São Paulo (SP).
De arrematadeira, ela logo foi promovida a auxiliar de almoxarifado e, então, pôde realizar o que mais duvidava: ter um emprego com carteira assinada.
"Fiquei uns três meses no arremate, embalando, passando, e subi de cargo depois. A gente vai aprendendo aos poucos. Hoje eu cuido do estoque, da entrada e saída dos cortes, bordados [...] quando vai para a penitenciária e volta, tenho o controle. Tenho chances de crescer aqui", conta a jovem, mãe de uma menina de 9 anos.
Além de dar apoio a egressas como Shirley no recomeço de sua carreira, o projeto tem como alvo a reciclagem de resíduos da indústria têxtil, garantindo que os tecidos usados para confecção retornem para a economia.
Como conta Roberta Negrini, fundadora e CEO do Movimento Eu Visto O Bem, a ideia surgiu de um incômodo com o desperdício e a desigualdade salarial no mercado da moda. "Eu pensava se não seria possível desenvolver um modelo de negócio, uma empresa mesmo, que crescesse economicamente e gerasse impacto positivo para o meio ambiente e as pessoas", lembra,
Uma nova chance para as 'invisíveis'
Após conhecer o Segunda Chance, projeto da organização não governamental AfroReggae, que emprega pessoas que deixaram o sistema prisional, Roberta percebeu que também poderia fazer a diferença junto a esse público.
"Conheci ali uma mulher que estava desesperada para reaver a guarda dos filhos e, para isso, precisaria de trabalho e endereço fixo. Ela chorava copiosamente e aquilo me chamou muita atenção. São mulheres consideradas invisíveis, pessoas que não nos damos conta que existem", diz.
Com a iniciativa, a empreendedora tem em mente o combate ao baixíssimo índice de empregabilidade que afeta as egressas do sistema prisional brasileiro.
"Por trás de toda a detenção há muita história para ser contada. A periculosidade de mulheres no sistema prisional é baixíssima, fora as motivações que levam aos delitos, muitas vezes ligadas à subsistência. Foi uma causa que me apaixonei por entender que é muito fácil mudar a vida dessas mulheres através do emprego. A profissionalização é o caminho", afirma.
Em 2013, ela encabeçou um case de sucesso na área, envolvendo mão de obra social e resíduos têxteis, chegando a abrir cinco lojas.
Mas, com o passar do tempo, percebeu que a demanda era muito alta — 2 mil mulheres ainda aguardavam para serem empregadas — e decidiu mudar seu modelo de negócio. Era possível, segundo ela, ampliar o alcance se a iniciativa olhasse para o mercado como um todo, não somente para o consumidor direto.
Foi então que, em 2019, Roberta decidiu levar o movimento para a área corporativa. "Agregamos o valor da mão de obra social, pensando sempre na matéria-prima com menor impacto possível. Atuamos tanto com empresas que fazem colaborações com a gente — e vendem para o consumidor — como com empresas que não são têxteis, mas que querem simplesmente que aqueles produtos tenham relevância", diz.
Com uma capacidade produtiva de até 20 mil peças por mês, a depender do produto, hoje os tecidos são 100% provenientes de economia circular, seja por meio da reciclagem de garrafas PET ou via desfibrador de algodão. Entre os itens produzidos estão camisetas, ecobags, uniformes, mochilas e itens para mesa posta.
Dar emprego e salvar o meio ambiente
Com sede em São Paulo, o Movimento Eu Visto O Bem conta com três núcleos produtivos, dois deles na Penitenciária Feminina Sant'Ana, na zona norte da capital, e outro em um galpão na Vila Leopoldina, zona oeste da cidade. Nesse último espaço, trabalham mulheres que já conseguiram a liberdade e mulheres liberadas diariamente para a atividade com uso de tornozeleira eletrônica. A organização ensina costura do nível básico ao avançado para as colaboradoras.
Enquanto as egressas são contratadas em regime CLT, as mulheres que ainda estão cumprindo pena recebem o salário em uma conta pecúlio, podendo utilizar os valores para suprir pequenas despesas pessoais, como itens de higiene, ou enviá-los a familiares.
Os salários variam de função para função, mas todas recebem, no mínimo, o piso na área de costura em São Paulo, de R$ 1.280. Roberta calcula que mais de 600 mulheres já passaram pelo negócio, sendo que, atualmente, há 50 mulheres cumprindo pena e nove egressas em atuação.
Num contexto de crise climática e forte desigualdade de gênero no mundo do trabalho, o Movimento Eu Visto O Bem propõe soluções que combinam produtividade com impacto social. "É a solução para o descarte de resíduos e, ao mesmo tempo, para gerar oportunidade à mulher que não tem empregabilidade no mercado de trabalho. São produtos que merecem existir", finaliza Roberta.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.