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'ParanÁfrica': A história esquecida de Curitiba, capital mais negra do Sul

Ao lado de Mel, Kandiero lidera as visitações no projeto Linha Preta, do Centro Cultural Humaitá - Divulgação/João Damas
Ao lado de Mel, Kandiero lidera as visitações no projeto Linha Preta, do Centro Cultural Humaitá Imagem: Divulgação/João Damas

Da Redação

17/04/2023 06h00

Um roteiro oferecido aos fins de semana em Curitiba (PR) está recontando a história da capital paranaense a partir de um ângulo por vezes esquecido: o de sua população negra.

Promovida desde 2015 pelo Centro Cultural Humaitá, a Linha Preta, como é chamado o projeto, apresenta referências históricas e culturais da cidade ao longo de, aproximadamente, três horas de percurso a pé, em 21 pontos de visitação. Cerca de 14 mil pessoas, entre turistas e moradores, já percorreram a rota.

Com 24% dos habitantes autodeclarados negros, de acordo com o último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Curitiba é considerada a capital mais negra no Sul do país.

Ainda assim, durante o passeio, muitos moradores se surpreendem ao descobrir mais sobre a história da cidade, conta Melissa Reinehr, responsável pelo roteiro junto com o zelador cultural Adegmar José da Silva, conhecido como Mestre Kandiero.

"As pessoas sentem que foram enganadas, traídas, se emocionam por saber o que houve de injustiça no passado. Querem fazer algo para reverter essa história", diz ela.

Dentre as principais paradas do roteiro, estão praças, igrejas, ruínas e monumentos no Centro Histórico de Curitiba. Na companhia de Melissa, os visitantes podem conhecer, por exemplo, a história das Arcadas do Pelourinho, ao lado do Paço da Liberdade.

Instalado em 1668, o pelourinho da então Vila Nossa Senhora da Luz dos Pinhais representava a fundação de uma vila, mas também o espaço para castigar pessoas escravizadas.

Ao longo das conversas, muitos curitibanos acabam se surpreendendo ao descobrirem um outro lado da história de sua cidade  - Divulgação/João Damas - Divulgação/João Damas
Ao longo das conversas, muitos curitibanos acabam se surpreendendo ao descobrirem um outro lado da história de sua cidade
Imagem: Divulgação/João Damas

Uma igreja erguida por negros e para negros

"Mas a história conhecida é de que ali não havia castigos", diz Melissa, que também cita outro símbolo apagado da história negra de Curitiba, a Igreja Nossa Senhora do Rosário, de 1946. No estilo barroco, a construção atual foi erguida no lugar da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de São Benedito, que havia sido projetada e levantada por e para pessoas negras, em 1737.

"A narrativa sobre a formação de Curitiba diz que não havia pessoas negras aqui, mas a segunda igreja construída na cidade foi erguida por negros", lembra ela.

Através dessa perspectiva, chamada de afrocentrada, os participantes podem conhecer melhor o papel da população negra nos ciclos de desenvolvimento de Curitiba e do Paraná. "A etnia africana chegou 300 anos antes dos imigrantes europeus. A contribuição dessas pessoas não foi apenas com força física, mas com inteligência e tecnologia", afirma Kandiero.

No Linha Preta, os passeis duram  três horas a pé, com direito a 21 pontos de visitação - Divulgação/João Damas - Divulgação/João Damas
No Linha Preta, os passeios duram três horas a pé, com direito a 21 pontos de visitação
Imagem: Divulgação/João Damas

'A África é o berço da humanidade'

Segundo o zelador cultural, o africano que encontrou os primeiros veios de ouro em Minas Gerais já havia passado por minas de Curitiba e Paranaguá. O fato inusitado consta de um registro do padre jesuíta André João Antonil. "É uma pista que ele deixou em 1711. Embora esteja registrado que o ouro foi encontrado por uma pessoa negra, os livros só mostram o nome do proprietário dos africanos", lamenta.

O episódio, lembra Kandiero, ilustra o conhecimento africano no trato com minérios e outras tecnologias milenares, como o domínio da metalurgia e a construção de casas de taipa. Reconhecer esse passado, segundo ele, é uma forma de convidar os participantes da Linha Preta a ampliarem seu olhar sobre os escravizados.

"Quando as pessoas olham para a África, têm uma ideia errônea, como se ela fosse uma exportadora de mão de obra. Não olham que ela é o berço da humanidade, da matemática, das línguas, religiões", diz.

Da arquitetura à religião, uma história não contada

Como uma legítima aula de campo, a Linha Preta mostra pontos da história curitibana convenientemente esquecidos. A ideia do projeto surgiu em 2014, na véspera do Congresso Brasileiro de Pesquisadores Negros, sediado em Curitiba no ano seguinte. Foi quando um grupo de estudiosos entendeu que era necessário apresentar um atrativo cultural sobre a cultura negra na cidade.

O zelador cultural Adegmar José da Silva, conhecido como Mestre Kandiero - Divulgação/João Damas - Divulgação/João Damas
O zelador cultural Adegmar José da Silva, conhecido como Mestre Kandiero
Imagem: Divulgação/João Damas

Desde então, o projeto já atendeu cerca de 350 grupos. "Nos moldamos a cada edição. A depender de cada grupo, um aspecto é mais ressaltado, como o arquitetônico, ou envolvendo religiões. É tanta informação que conseguimos sempre fazer uma Linha Preta diferente da outra", diz Kandiero.

Durante a pandemia, a experiência foi adaptada para o espaço virtual, com a oferta de palestras online sobre a Linha Preta. Hoje, além das datas oferecidas ao público em geral, é possível agendar o tour pelas redes sociais, com o custo de R$ 40 por pessoa. O Centro Cultural Humaitá estuda, ainda, a possibilidade de oferecer edições quinzenais. A próxima está marcada para o dia 13 de maio.