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A missão do xamã: ameaçados de extinção, saberes peruanos chegam ao Brasil

O xamã peruano Neten Kea - Arquivo pessoal/ Anelise Pacheco
O xamã peruano Neten Kea Imagem: Arquivo pessoal/ Anelise Pacheco

Carlos Minuano

19/04/2023 06h00

"Há pessoas que bebem ayahuasca poucas vezes e já se apresentam como xamãs, convidam pessoas e começam a fazer trabalhos com a bebida, mas é preciso estar preparado para manejar essa medicina, isso pode levar mais de 10 anos", afirma o curandeiro peruano do povo indígena Shipibo-Conibo, Neten Kea, 48.

Foi assim com o curandeiro que hoje já acumula trinta anos dedicados ao uso medicinal da ayahuasca e de outras plantas. Um complexo e antigo conhecimento tradicional transmitido oralmente de geração a geração - mas ameaçado de desaparecer por problemas como invasão de territórios e mineração ilegal, que colocam em risco não apenas a tradição, mas também a própria sobrevivência do povo Shipibo-Conibo.

Neten Kea conversou por telefone com a reportagem de Ecoa, enquanto fazia uma dieta de plantas na selva peruana onde vive. É uma preparação necessária antes de sua próxima missão: viajar ao Brasil para difundir o conhecimento tradicional Shipibo-Conibo em uma série de cerimônias de ayahuasca no Rio Grande de Sul e em São Paulo.

O uso ritualístico e religioso da bebida psicodélica ayahuasca é permitido no Brasil, por uma resolução de 2010 do Conad (Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas), mas não é recomendado para pessoas que sofrem de doenças psiquiátricas — como esquizofrenia e transtorno bipolar - ou doenças cardíacas.

Proteção do conhecimento tradicional

1 - Arquivo pessoal/ Anelise Pacheco  - Arquivo pessoal/ Anelise Pacheco
Neten Kea em seus trabalhos xamânicos
Imagem: Arquivo pessoal/ Anelise Pacheco

O curandeiro Shipibo-Conibo está vindo ao Brasil a convite da terapeuta brasileira Anelise Pacheco, 44, que participou de retiros no centro Sanken Mai. "Fui estudar junto com eles sobre essa medicina ancestral da floresta. Estou entrando devagarinho nesse mundo de conhecimento e sabedoria."

Mundo que ela decidiu ajudar a proteger ao criar o projeto Conexões Shipibo, que busca fortalecer e preservar as tradições culturais com as quais teve contato na selva. "A ideia é permitir um acesso maior a esses trabalhos ancestrais que são guarnecidos por esses mestres curandeiros."

A terapeuta acredita que o contato com os guardiões da medicina tradicional pode ajudar a entender melhor o uso da ayahuasca. Ela se diz preocupada com a maneira como essa prática está sendo conduzida de forma inadequada por pessoas despreparadas, trazendo prejuízo para quem usa e para a imagem da bebida ancestral amazônica.

"Temos como intenção concentrar pessoas interessadas em participar dos trabalhos aqui no Brasil [em abril no Rio Grande do Sul e em maio em São Paulo] e também levar grupos ao Peru no centro indígena em Pucallpa". Segundo ela, esse movimento tem o sentido de contribuir para o fortalecimento desse conhecimento tradicional.

Pontes entre mundos

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Neten Kea é um curandeiro peruano do povo indígena Shipibo-Conibo
Imagem: Arquivo pessoal/ Anelise Pacheco

A população Shipibo-Conibo, segundo dados oficiais do governo peruano, atualmente é de cerca de 35 mil pessoas. A maioria vive na região de Ucayali e em Loreto, na selva amazônica do país.

Há séculos, o povo Shipibo-Conibo utiliza a ayahuasca como parte de sua cultura e crenças. Para as populações indígenas da floresta amazônica essa prática tem uma importância que vai para muito além do valor histórico ou cultural.

É central também para a identidade e territórios desses povos, tanto no desenvolvimento de movimentos sociais quanto na preservação da floresta e de suas tradições.

Na Colômbia e no Peru, já existem associações indígena focadas no uso da ayahuasca. No Brasil, desde 2017, povos indígenas também estão se mobilizando e organizando conferências sobre o tema.

A antropóloga Fernanda Gebara, que atualmente pesquisa os povos indígenas da Amazônia, observa que a ayahuasca tem um papel de intercessão entre o espiritual e o material. "Faz essa comunicação entre mundos na tradição de diferentes povos indígenas da Amazônia."

A pesquisadora conta que certa vez um um xamã lhe disse que a ayahuasca é como um GPS para os indígenas, que guia a comunidade sobre o que fazer e orienta a direção a seguir na vida, com a família, comunidade e tudo mais.

'Chamado das plantas'

Neten Kea conta que desde muito criança sentia uma espécie de "chamado" das plantas para o mundo xamânico. "Com 18 anos comecei a tomar a medicina [ayahuasca], foi uma limpeza profunda, me senti curado", relembra Neten.

"A ayahuasca mostrou minha vida desde meu nascimento e o que eu teria que fazer para encontrar minha verdade e o meu caminho". Depois da experiência, ele passou por um processo de aprendizado que durou 10 anos. Só depois, Neten começou a atender como curandeiro em sua comunidade.

Hoje, junto com dois irmãos, ele dirige um centro de tratamento com plantas medicinais amazônicas, em Pucallpa, chamado Sanken Mai (Terra da Medicina), na região de Ucayali, na Amazônia peruana. Lá, os irmãos curandeiros oferecem retiros de semanas ou meses. As principais enfermidades tratadas são a depressão, ansiedade, traumas e vícios. "Isso tem que ser feito com muito cuidado, porque trabalhar com a mente humana é muito delicado."

Hiperconectividade

Um estudo conduzido por um grupo de pesquisadores do Imperial College London, no Reino Unido, publicado no último mês de março na revista científica Pnas, investigou os efeitos da DMT (a dimetiltriptamina, presente na bebida) e revelou que a ayahuasca causa hiperconectividade entre diversas regiões do cérebro.

Segundo os cientistas, a pesquisa de neuroimagem controlada por placebo (quando pesquisadores e pacientes desconhecem quem tomou a substância testada), oferece a visão mais abrangente da ação cerebral aguda dos psicodélicos até o momento.

As imagens revelaram um impacto profundo da substância em todo o cérebro, principalmente em áreas como planejamento, linguagem, memória, tomada de decisões complexas e imaginação.

De acordo com os pesquisadores, as regiões por onde entendemos a realidade tornam-se hiperconectadas, com uma comunicação mais caótica, fluida e flexível.

"Na dose que usamos, é incrivelmente potente", disse ao The Guardian, o cientista Robin Carhart-Harris, da Universidade da Califórnia, em São Francisco. "As pessoas descrevem deixar este mundo e entrar em outro que é incrivelmente envolvente e ricamente complexo."

"A capacidade dos psicodélicos de mudar a qualidade neurobiológica da consciência de maneira fundamental e muitas vezes transformadora, preservando a vigília, é indiscutivelmente incomparável na farmacologia", concluem os pesquisadores no artigo da Pnas.