Ele já ouviu que 'seu lugar é na senzala', mas hoje prova que é no esporte
"Lugar de preto é na senzala", ouviu Christian Rocha, aos 15 anos, de uma professora em Manaus (AM). Quase três décadas após o episódio, aos 42, o morador do bairro do Coroado, zona leste da capital amazonense, se tornou reconhecido pela luta contra o racismo no Amazonas. Formado em direito e faixa preta de jiu-jitsu, ele luta pela inclusão de jovens negros na educação e no esporte.
Primeiro negro a receber uma medalha de ouro pela Câmara Municipal de Manaus, também condecorado pelo Senado Federal em razão de seu trabalho voluntário, Christian iniciou sua jornada ainda na adolescência, quando conheceu Nestor Nascimento, sócio fundador da Escola de Samba Vitória Régia e considerado o maior líder negro da história do estado.
"Eu estudava no centro e comecei a escutar histórias de pessoas que lutavam contra o racismo. Foi quando ouvi falarem, pela primeira vez, do Nestor Nascimento. Então aquilo me despertou, porque a maioria das pessoas que lutam por justiça o fazem porque elas foram injustiçadas."
Hoje, o educador lembra com alegria de ter homenageado sua grande referência na luta por igualdade. "Consegui fazer uma homenagem a ele ainda em vida, na Câmara Municipal, com a medalha Nestor Nascimento. Desde então, a gente criou uma grande amizade, ele já estava muito debilitado, não conseguia falar, me entregou todos os documentos e, com a mão, ele me pedia para eu seguir", diz.
Idealizada pelo ativista entre 2002 e 2003, a honraria foi criada com o objetivo de reconhecer lideranças negras e indígenas, o primeiro registro desse tipo já feito no estado. "Vi a necessidade de criar essa medalha como uma forma de agradecer às pessoas que lutam".
Do racismo às palestras, uma reviravolta na universidade
Após o trauma do racismo vivido em sala de aula, Christian hoje promove palestras no ambiente educacional, seja em escolas ou universidades da capital amazonense.
"Eu já era convidado para ir a escolas e a faculdades. Havia uma intolerância muito forte na época, porque a gente tinha que provar que o racismo existia [...] quando pessoas tentam justificar essa prática, a gente percebe que a luta ainda não acabou".
Acadêmica de psicologia, Juliana dos Santos, 25, conheceu Christian em uma palestra no Dia da Consciência Negra. Desde então, o educador se tornou uma inspiração para ela.
"Por causa dele eu me senti mais inspirada a lutar pelas causas em que acredito, me senti acolhida por pessoas que entendem pelo que eu passo no dia a dia", diz ela que, em suas redes sociais, debate saúde mental e negritude, com foco no tema do bem-estar.
Mudando jovens pelo esporte
Faixa preta de jiu-jitsu há 15 anos, Christian também criou, ao lado do irmão Marcos Rocha, o projeto Dignidade, que já incluiu mais de 3 mil jovens por meio do esporte. Interrompida na pandemia, a iniciativa deve ser retomada este ano.
"Quando o projeto começou, víamos que a nossa comunidade estava se matando, então eu comecei a levar essa alternativa. Só que a gente sempre se esbarra na limitação de patrocínio", diz ele, que, na época, firmou parcerias com o governo estadual visando a continuidade do projeto.
"O professor não queria os melhores atletas, ele queria os melhores alunos", é assim que Natanael Gomes, 24, descreve sua experiência no projeto Dignidade.
Militar do Exército, além de ter conquistado a faixa preta no jiu-jitsu, ele se vê realizado com o impacto do projeto em sua formação pessoal. "Foi uma bênção na minha vida. Através do projeto tive a oportunidade de viajar, conhecer outras áreas, [ele] mudou minha vida até hoje", diz.
Para participar do Dignidade, ter talento para as artes marciais não bastava. "Para treinar comigo, tinha que apresentar o boletim. Quando estava ruim, eu e os outros professores marcávamos uma aula de reforço para os alunos", diz Christian, que percebe o impacto do projeto na redução de jovens na rua e no menor consumo de drogas.
Uma história de luta contra o racismo
Após fundar, aos 18, o movimento Orgulho Negro no Amazonas, em sua trajetória, Christian ainda contribuiu para transformar o Dia da Consciência Negra em feriado municipal em Manaus. "Propus através do vereador Jorge Luís, um vereador representante da Igreja Universal, eu era assessor dele na época. O projeto teve muita resistência", lembra.
Além das palestras em universidades e do projeto social, atualmente o educador conta um pouco de sua história de vida e de luta contra o racismo no projeto "Da cor ao preconceito", desenvolvido no Espírito Santo e que tem ele como tutor.
"O racismo atrasa o crescimento de uma nação [...] para mim, ele representa o atraso, o retrocesso — confirma que o Brasil precisa crescer intelectualmente, e de uma forma mais humana", finaliza.
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