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Amiga do vocalista do Coldplay, Dona Tati faz do 'boteco uma igreja' em SP

Dona Tati - Camila Svenson/UOL
Dona Tati Imagem: Camila Svenson/UOL

Lucas Veloso

Colaboração para Ecoa, em São Paulo (SP)

25/04/2023 06h00

Na rua Conselheiro Brotero, zona oeste de São Paulo, há uma "igreja" de esquina. As fitas do Senhor do Bonfim, espalhadas pelas grades do lugar, podem indicar o ambiente sagrado. A bandeira da escola de samba Camisa Verde e Branco, uma imagem de Zé Pelintra e outra de São Jorge, um berimbau e o tambor são outros itens que remetem aos rituais que acontecem ali.

Devota do santo que derrota o dragão, a responsável pelo local é Sebastiana Alves Martins, 67, ou só Dona Tati, como é mais conhecida. Sem nome de santo ou sob a supervisão do papa, o Boteco da Dona Tati é o local onde as tradições culturais e a devoção são tão importantes quanto a bebida e a comida que são servidas.

Natural da cidade de Estrela d'Oeste (SP), ela foi criada, na maior parte do tempo, pelos avós maternos. Além dela, teve uma irmã. "Ela tinha uma deficiência muito grande, não andava, nem falava. Ficava amarrada numa cadeira", lembra. Anos depois, ficou sozinha com a avó na roça, onde trabalhava com algodão e café.

Aos 13 anos chegou à capital paulista com uma mulher que procurava uma menina que pudesse trabalhar como empregada doméstica. "Era aquele sonho de menina, cidade grande. Deixei tudo e vim para cá", comenta.

Dona Tati - Camila Svenson/UOL - Camila Svenson/UOL
Dona Tati
Imagem: Camila Svenson/UOL

Na casa da patroa em São Paulo ficou até os 15 anos — até sofrer assédio do sobrinho da família que foi para a casa após ser expulso do Exército. Tati não se calou, apesar da pouca idade. Com isso, foi para outra família, na região do Brás.

Já com uns 16 anos, fez amizade com uma senhora com quem ia nos cultos das Testemunhas de Jeová. A amiga tinha um bar e foi assim que Tati começou a trabalhar com ela. E ainda trabalhava de babá de um menino. A vida era revezada entre os trabalhos e o supletivo, onde ingressou a fim de terminar os estudos.

O primeiro filho de Dona Tati foi Ricardo Martins, o Batata. Em maio, no entanto, completará sete anos que o primogênito, com 36 anos à época, morreu vítima de um erro médico, como diz a família. O primeiro diagnóstico foi caxumba, depois teve três paradas respiratórias enquanto trabalhava no Rio de Janeiro.

Na conversa com Ecoa, enquanto fala da história, Tati se emociona, bebe água, fica com os olhos marejados e a voz embargada. Tira os óculos, enxuga as lágrimas para tentar retomar a conversa, mas é difícil. "Agora, em 7 de maio, fazem 7 anos. Foi o presente que eu recebi no Dia das Mães. Em 8 de Maio, no cemitério da Vila Alpina, recebi o corpo do meu filho", diz, chorando.

Anos depois engravidou novamente, mas perdeu o bebê aos seis meses de gestação. Depois de um tempo, outra gravidez, de Thiago Martins Guimarães, hoje com 39 anos. "Ele é minha força, e o Mathias [o neto de 4 anos], que é lindo, você vai ver".

'Tia é o caralho'

A segunda experiência com bares que Tati teve foi no metrô Vergueiro, onde a mãe chegou a montar um negócio pequeno, em que ela ia com os dois filhos, o irmão e revezava os trabalhos por lá. "Trocava as fraldas dele lá. O Thiago ficava na pontinha do dedo para jogar na mesa de bilhar", cita. Por falta de instrução e ajuda, o bar fechou.

Em 2001 montou uma rotisseria. Devido a problemas com álcool na família, não queria vender cachaça, nem cerveja, mas logo teve de ceder para manter o movimento do local. Depois que começou a vender bebidas alcoólicas, a demanda aumentou e assim nasceu o primeiro Boteco da Dona Tati.

Dona Tati - Camila Svenson/UOL - Camila Svenson/UOL
Dona Tati
Imagem: Camila Svenson/UOL

Lá, uns a chamavam de tia, mas ela não curtia. O filho Thiago, que fazia curso de design, ficou responsável pela missão de reverter essa situação: "Ó, faz uma placa com Dona Tati, é assim que tem que me chamar. Tia é o caralho".

Chamada do jeito que queria, Tati começou a fazer parte de um evento chamado Feijoada de Jorge, em homenagem ao santo, em colaboração com um amigo. Nos dias em que rolava o evento, eles distribuíram pratos gratuitamente para quem fosse ao local, além de proporcionar um samba. Anos depois, o amigo mudou de lugar e faliu. Ela ocupou o mesmo espaço, mas também fechou até que achou o endereço que esta hoje, mas foi pega pela pandemia.

Com a ausência de clientes e as medidas de restrição, o local funcionou por uns meses como entrega de bebidas, mas não durou muito. Fecharam. Reabriram em abril de 2022 com comidas, bebidas e a presença do público.

'Amiga do Chris Martin'

A frase "nem sabia que esse cara existia" circulou muito nas redes sociais nas últimas semanas. Essa foi a resposta de Dona Tati que virou meme após Chris Martin, o vocalista da banda britânica Coldplay, que ficou dias em São Paulo para cumprir uma agenda de shows, apareceu em seu bar.

Conhecido por milhões de pessoas ao redor do mundo e por grande parte das pessoas que estavam na roda de samba no Boteco da Dona Tati, num domingo de março, o vocalista não despertou curiosidade nela. "Só lembro que o Chris era um homem alto, magro, com sorriso, e quiseram me apresentar como um cara famoso. Eu topei, mas sem saber de nada".

Dona Tati com Chris Martin, vocalista do Coldplay - Reprodução - Reprodução
Dona Tati com Chris Martin, vocalista do Coldplay
Imagem: Reprodução

Apresentada ao vocalista, ela diz que ele se abaixou, a cumprimentou humildemente e deu um botton que estava na camisa dele. Uma pessoa que viu o encontro dos dois sugeriu foto, mas alguém da produção disse que o artista não gostava de fotos. "Engraçado que falei que era ótimo, nenhum dos dois gostava, e todo mundo riu", conta Dona Tati. Mas a imagem acabou saindo, e circulando nas redes sociais, o que atraiu mais atenção para o boteco.

De completo desconhecido, Chris Martin ganhou uma fã. "Gosto das músicas dele. Agora eu vejo essa história dele, é uma pessoa legal, sou 'fanzona'. Gosto de tudo e vou continuar seguindo", promete.

'Para os negros, as coisas são poucas'

Para além da fama pessoal, a presença do vocalista do Coldplay foi importante para Dona Tati manter o negócio funcionando. Mulher negra, diz que para as pessoas como ela, no Brasil, as coisas não são fáceis. O racismo faz parte do jogo.

"Dá uma volta aqui na Barra Funda para você ver quantos negócios estão nas mãos de pessoas negras, como a minha mãe", indica o filho Thiago.

Roda de samba no bar de Dona Tati, na Barra Funda (SP). Local bombou após visita de Chris Martin - Camila Svenson/UOL - Camila Svenson/UOL
Roda de samba no bar de Dona Tati, na Barra Funda (SP). Local bombou após visita de Chris Martin
Imagem: Camila Svenson/UOL

Mais do que um discurso, as ações racistas atingem diretamente, inclusive dentro do próprio bar. Há poucos dias, ela conta, que uma cliente a viu perto do banheiro e a avisou que faltava papel higiênico já que ela que estava ali para limpar. Minutos depois, ao descobrir que tinha falado com a dona do bar, voltou arrependida, com vários pedidos de desculpas.

Apesar das coisas ruins e dos dias em que não está bem, Dona Tati diz agradecer muito a Deus por tudo. Católica, passa a maior parte do dia cuidando do boteco mais com a cabeça do que com o corpo "que já não a ajuda mais tanto".

"Fico para lá e pra cá, talvez infernizando a vida dos outros", diz rindo. "Aqui é uma grande família, com uma energia boa, de paz que te fortalece, uma igreja. Quanto eu estou chorona, prefiro estar aqui do que na minha casa".

Dona Tati em meio a lotação de seu boteco, em São Paulo - Camila Svenson/UOL - Camila Svenson/UOL
Dona Tati em meio a lotação de seu boteco, em São Paulo
Imagem: Camila Svenson/UOL