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Ele encara o Parkinson para seguir do lado dos excluídos: 'Vou até os 90'

Um dos criadores da fotografia popular, João Roberto Ripper completou 50 anos de carreira - Acervo/João Roberto Ripper
Um dos criadores da fotografia popular, João Roberto Ripper completou 50 anos de carreira Imagem: Acervo/João Roberto Ripper

Carolina Bataier

Colaboração para Ecoa, em Brasília (DF)

01/05/2023 06h00

A voz mansa e a fala pausada passam uma mensagem firme: "Minha fotografia é parcial, ela tem um lado". Em 50 anos de experiência como fotógrafo, João Roberto Ripper guarda um acervo de milhares de sorrisos, brincadeiras e gestos afetuosos. São imagens de brasileiros que vivem em favelas, aldeias, quilombos e comunidades tradicionais.

Fotógrafo desde os 19 anos, Ripper transitou por veículos de comunicação de relevância nacional, retratando o cotidiano de violência vivido por essas populações.

De seu incômodo com a "história única" contada nas redações dos jornais (termo emprestado da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie), ele deu vida a um projeto pessoal de fotografia.

'Eu aprendo com quem fotografo'

Buscando contar as histórias de comunidades invisibilizadas, há três décadas, Ripper criou a "Fotografia do Bem-Querer", um conjunto de orientações para quem deseja unir fotografia, cuidado com os indivíduos e respeito às histórias contadas.

"Isso significa você trabalhar a sua foto para que ela seja um caminho de benquerer entre quem você fotografa e as pessoas que vão receber essa informação", explica.

Um dos trabalhos mais recentes, o registro das comunidades de apanhadores de flores sempre-viva, em Minas Gerais, vem sendo realizado há cerca de dez anos.

"Para contar outras histórias, eu tenho que aprender com as pessoas que eu vou fotografar. Por isso, eu não as faço assinarem um termo de cessão de imagem. Eu assino um compromisso com elas", conta ele, que também registra o cotidiano de vazanteiros, caatingueiros e geraizeiros por todo o país.

Tertuliano Alves, apanhador de flores, é fotografado pela filha Eva de Jesus Alves no Parque Nacional das Sempre Vivas (MG), em 2015. - Acervo/João Roberto Ripper - Acervo/João Roberto Ripper
Tertuliano Alves, apanhador de flores, é fotografado pela filha Eva de Jesus Alves no Parque Nacional das Sempre Vivas (MG), em 2015.
Imagem: Acervo/João Roberto Ripper

O nascimento da fotografia popular

Nas comunidades fotografadas, Ripper oferece cursos de fotografia. Esse trabalho formativo teve início em 2004, quando foi convidado por Jailson de Souza e Silva, fundador do Observatório de Favelas, no Rio de Janeiro, para produzir as imagens que ilustrariam o livro "Favela: alegria e dor na cidade" (Senac Editora, 2005).

Como resposta, ele propôs a criação de um curso de capacitação para que os moradores das favelas registrassem suas próprias vidas. Foi quando surgiram os Fotógrafos Populares da Maré, iniciativa que oferece ensino gratuito para quem mora nas favelas

Ali, Ripper se formou professor e desenvolveu a didática que é levada para quilombos, aldeias e comunidades tradicionais. O modo de trabalho, aliando a escolha das histórias contadas à transmissão dos saberes, define a chamada fotografia popular.

Apanhadora de flores, em Minas Gerais (2018). As comunidades de apanhadores de flores sempre vivas, na região do Vale do Jequitinhonha, foram reconhecidas como Patrimônio Agrícola Mundial pela ONU - Acervo/João Roberto Ripper - Acervo/João Roberto Ripper
Apanhadora de flores, em Minas Gerais (2018). As comunidades de apanhadores de flores sempre vivas, na região do Vale do Jequitinhonha, foram reconhecidas como Patrimônio Agrícola Mundial pela ONU
Imagem: Acervo/João Roberto Ripper

"Eu tenho uma teoria de que o termo fotografia popular deriva do sucesso da Escola de Fotógrafos Populares, porque a expressão entra na mídia, na academia, em todo lugar, à medida que a escola foi bombando", explica Dante Gastaldoni, fotógrafo e ex-coordenador pedagógico do curso.

Contra a 'história única'

Como conta Dante, as formas de se fazer fotografia popular mudaram ao longo dos tempos. No passado, existiam, por exemplo, os lambe-lambes, fotógrafos que faziam registros em espaços públicos como praças e feiras. A partir de 2004, a fotografia popular passou a privilegiar o olhar de dentro dos ambientes retratados, em detrimento de um observador externo.

"Quando a gente vê os fotógrafos populares trabalhando e mostrando as belezas e os fazeres dessas populações, a gente vem de braços dados com a Chimamanda Adiche e a luta contra o perigo da história única", comemora Ripper.

 Irmãos brincando nas águas do rio São Francisco (BA), na travessia de Xique-Xique para Barra (2008): "Fotografar criança é deixar acontecer, ficar no mesmo tamanho que elas e esperar que vai sempre ter uma linda foto". - Acervo/João Roberto Ripper - Acervo/João Roberto Ripper
Irmãos brincando nas águas do rio São Francisco (BA), na travessia de Xique-Xique para Barra (2008): "Fotografar criança é deixar acontecer, ficar no mesmo tamanho que elas e esperar que vai sempre ter uma linda foto".
Imagem: Acervo/João Roberto Ripper

Durante o período de isolamento social, seus saberes foram compartilhados pelo mundo digital. Numa aula disponibilizada pelo Sesc Paraty, o fotógrafo mostra imagens feitas em seu ambiente familiar e dá a dica:

"É um excelente exercício: leva para a sua família a sua visão de autor e a liberdade que você quer ao fotografar o mundo; e leva para o mundo o cuidado que você tem com a sua família".

Perto de completar 70 anos e portador da Doença de Parkinson, Ripper mantém uma rotina de musculação e pilates para recuperar a força e seguir trabalhando.

Ele planeja, em breve, retornar a Minas Gerais e dar continuidade aos registros dos apanhadores de sempre-vivas. "Se eu puder, vou até os 85, 90 anos fotografando no meio do mato essas pessoas lindas", diz.

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