Em plena escravidão, ele conseguiu indenização para dezenas de negros em MG
Em meados de 1885, Bento Epaminondas, homem negro, promoveu um espetáculo no Teatro Municipal de Sabará (MG) em prol da liberdade de alguns escravizados. No final da apresentação, discutiu com um inglês diretor de uma companhia de mineração que escravizou ilegalmente gente livre e foi denunciado por Bento na Justiça e na imprensa.
O episódio repercutiu bastante pelos jornais da época e resume a forte atuação de Bento na luta abolicionista no Brasil, principalmente em Minas Gerais.
Embora ainda esteja fora dos holofotes da história, ele era conhecido como o "advogado dos escravos", pois, assim como Luiz Gama, atuou como rábula (advogado sem formação em direito) e impediu a reescravização de muitos homens negros. Abolicionista, também teve importante atuação como promotor público, delegado e vereador.
Quem foi Bento Epaminondas
Filho de um homem rico e branco, Bento Epaminondas teve a liberdade concebida pelo pai assim que nasceu, em 1847, em Diamantina, no norte de Minas Gerais.
Com a oportunidade de estudar, tornou-se rábula e abolicionista de destaque na região, visando não apenas acabar com a escravidão mas também fortalecer um projeto de sociedade que incluísse o negro como cidadão pleno com direitos políticos e civis.
Bento viveu em uma época em que a escravidão, enquanto forma de organização social, estava prestes a ser abolida. Antes da lei Áurea em 1888, outras leis vinham sendo aprovadas a fim de acabar com o sistema gradualmente, como foi o caso da Lei dos Sexagenários (1885), que determinou que os escravizados com 60 anos ou mais deveriam ser livres, e a Lei do Ventre Livre (1871), que determinou que pessoas nascidas após o dia 28 de setembro de 1871 seriam livres.
Ao mesmo tempo, Bento também testemunhava como os proprietários de escravos e defensores do sistema escravocrata utilizavam estratégias para prolongar a vida útil do sistema vigente, impulsionando a escravização ilegal de pessoas nascidas livres ou libertas, prática comum na segunda metade do século 19.
Abolicionismo negro
Nos anos 1870, Bento ingressou no Partido Republicano e produziu diversos textos políticos publicados na imprensa. Em outubro de 1878, ele e outros intelectuais negros da região fundaram a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário da cidade de Sabará - a Sociedade do Rosário, uma associação cujo principal objetivo foi "defender, proteger e propagar a causa dos irmãos pretos".
Entre os casos mais emblemáticos da atuação de Bento como rábula ocorreram entre 1878 e 1884 em processos contra a escravização ilegal de cerca de 300 pessoas pela mineradora inglesa Saint John del Rey Mining Company, proprietária da famosa Mina do Morro Velho, em Sabará. Alguns casos chegaram ao Supremo Tribunal de Justiça, a mais alta corte do judiciário imperial. Bento garantiu que as pessoas conquistassem o direito à liberdade jurídica e ao pagamento de salários atrasados.
Em sintonia com os movimentos abolicionistas pelo país, em janeiro de 1888, quatro meses antes da assinatura da Lei Áurea, o rábula e outros colegas da Sociedade do Rosário, também criaram a Sociedade Emancipadora de Sabará.
A cor marcante
Devido à profissão, Bento transitou em diferentes espaços e camadas sociais, incluindo as elites econômicas. Tornou-se delegado, punindo proprietários escravistas que maltratavam seus escravizados, e também foi vereador, propondo leis que regulamentaram a jornada de trabalho e o salário dos trabalhadores pobres negros.
"Consciente do seu lugar de representante do interesse de milhares de pessoas que não tinham condições de expressar suas demandas, suas expectativas, seus sonhos, suas desilusões, suas dores e suas esperanças, Bento usou as suas posições de poder, nos cargos de promotor público, delegado ou vereador - duramente construídas ao longo da vida - como meio de luta coletiva"
Jonatas Roque Ribeiro, historiador
Mesmo tendo nascido juridicamente livre, Bento enfrentou inúmeras barreiras e preconceitos devido à sua raça. Sua cor de pele e fenótipo foram frequentemente usados como mecanismos de desqualificação de sua humanidade e cidadania.
Pouco tempo após sua morte, em decorrência de uma intoxicação intestinal em meados de abril de 1904, sua viúva, Carolina Epaminondas, e integrantes da Irmandade do Rosário, denunciaram na imprensa a tentativa de apagamento da memória de Bento Epaminondas, por exemplo, na história da Santa Casa de Misericórdia de Sabará. Bento foi provedor da instituição e teve seu retrato retirado do salão principal do prédio poucos meses após seu falecimento.
Existem raríssimos relatos sobre a trajetória de Bento, assim como não há nenhum retrato ou imagem representativa do rábula que impulsionou a luta abolicionista em Sabará.
A imagem representativa desse conteúdo foi feita com base na descrição publicada pelo Jornal do Brasil, em janeiro de 1943, a partir das memórias de seu amigo, o jornalista Ernesto de Cerqueira:
"Mulato, alto, corpulento, ventrudo, tinha a cabeça pequena, desproporcionada ao corpo. Cortava os cabelos à escovinha. De modo que, mais reduzido o tamanho do crânio, avultava o rosto menineiro, de pele flácida, balofa, rematando em duas bochechas, que vinham imbricar com a papada. Mas o cloud da sua fisionomia eram os olhos: grandes, esbugalhados, parecendo que ao menor movimento se desprenderiam das órbitas. E as olheiras, fundas e largas, quase alcançavam as comissuras dos lábios. A voz, rotunda e forte, reboava, e o riso, espesso, ou sonoro, tinha todos os tons, da gargalhada à gaitada".
A maioria da sua historiografia tem sido elaborada por memorialistas locais. Os relatos encontrados neste texto fazem parte da pesquisa de mestrado "A classe de cor: uma história do associativismo negro sem Minas Gerais", defendida em 2022 pelo historiador Jonatas Roque Ribeiro, doutor em História e pós-doutorando na Universidade Federal de Juiz de Fora.
"Estamos falando de um legítimo representante da intelectualidade do pensamento republicano, ainda propositalmente 'esquecido' na história do Brasil", diz Ribeiro.
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