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'É pior que a morte': ela procura a filha há 27 anos e ajuda outras mães

Ivanise Esperidião ao lado de outras mães de filhos desaparecidos na Praça da Sé, em 2017 - Reprodução
Ivanise Esperidião ao lado de outras mães de filhos desaparecidos na Praça da Sé, em 2017 Imagem: Reprodução

De Ecoa, em São Paulo (SP)

14/05/2023 06h00

Ao subir as escadas rolantes da estação de metrô da Sé rumo à praça em um domingo de manhã, o retrato do centro de São Paulo aparece: pessoas em situação de rua andam de um lado para o outro sem rumo definido, fumam cigarro, bebem alguma bebida alcoólica transparente ou formam um círculo em torno de um pregador de voz alta e Bíblia na mão.

Nas escadarias da igreja, outra cena. Mulheres colocam na escada, lado a lado, cartazes com rostos de pessoas desaparecidas. Entre uma pedra e outra que segura as folhas, nas fotos impressas estão filhos que nunca mais foram vistos por suas mães.

"O desaparecimento é pior que a morte. Quando o filho desaparece, você vive a dor da incerteza, um luto inacabado. Nós, mães, carregamos uma dor que não tem remédio, temos uma ferida que não cicatriza", conta Ivanise Espiridião da Silva Santos.

Com ela, na praça, estão mais 13 mães e um pai, cada um com seu cartaz. Há 27 anos, contudo, ela chegou a reunir mais de 100 familiares na mesma escadaria. Nasciam, assim, as Mães da Sé.

Dia das Mães, por exemplo, para nós, é uma data muito sofrida. Porque por mais que a gente não queira lembrar a gente lembra.

Ivanise Espiridião da Silva Santos, mãe da Fabiana

'Eu quero minha filha'

Ivanise Espiridião da Silva Santos - Pedro Fratino - Pedro Fratino
“Quanto mais o tempo passa, a sensação de que a ferida não cicatriza, aumenta", Ivanise Espiridião da Silva Santos
Imagem: Pedro Fratino

"Minha luta começou no dia 23 de dezembro de 1995". Para contar sua história, Ivanise se senta na escadaria da Catedral da Sé. Ao fundo, uma caixa de som ecoa a voz de Roberto Carlos: "Eu voltei agora para ficar porque aqui é meu lugar".

Ela conta que, por volta das 20h naquele dia, Fabiana Espiridião da Silva, sua primogênita, saiu de casa acompanhada por uma colega para parabenizar uma amiga que fazia aniversário.

Depois de um abraço rápido na aniversariante, as duas amigas decidiram voltar para fugir da chuva que se aproximava. Na Avenida Raimundo Pereira de Magalhães, na altura do número 8000, em Pirituba, zona sul de São Paulo, elas se despediram. Cada uma seguiu em uma direção. Desde então, Fabiana, que tinha apenas 13 anos, nunca mais foi vista por Ivanise.

"Cadê a Fabiana?", perguntou a mãe para a caçula Fagna assim que chegou em casa depois de arrumar o cabelo em um salão em Perus, bairro próximo a Pirituba. A mais nova contou para a mãe a história do aniversário e a tranquilizou: "Ela já deve estar voltando".

Mas Fabiana não chegava e a chuva de verão que ameaçava cair veio forte. Ivanise, preocupada com a demora da filha, pegou um guarda-chuva e saiu para procurá-la. Não obteve notícias de nenhuma das amigas da filha e quando o relógio já passava das três da madrugada acordou o marido para que ele a acompanhasse à delegacia.

"Volta pra casa, mãe, isso é coisa de adolescente. Até o dia amanhecer, sua filha já voltou", foi o que ouviu do delegado. E, por mais que argumentasse, foi vencida e teve que esperar 24 horas do desaparecimento para registrar um boletim de ocorrência.

Durante três meses, contudo, ela encampou uma busca ativa e solitária pela filha. "Eu bati na porta de todas as emissoras de televisão e rádio e sempre ouvia que esse assunto não estava em pauta. E eu lá sabia o que era pauta. Eu ia para os hospitais, para os IMLs e à noite vinha para as ruas", lembra.

Às vezes o desespero de Ivanise era tão grande que ela gritava a plenos pulmões, na rua mesmo: "Eu quero minha filha, eu quero minha filha".

Se sentiu culpada pelo sumiço de Fabiana até porque ouviu do marido que a culpa era dela por ter voltado a trabalhar e a estudar. Ivanise tinha acabado de ingressar em uma universidade de direito.

"Chegou uma hora que eu não aguentei mais. Sem dormir e sem comer direito, fui me degradando física e psicologicamente. Até o dia que eu estava tomando banho e apaguei. Quando eu acordei, estava no hospital".

Com um metro e meio de altura, Ivanise chegou a pesar 36 kg e ouviu do médico que, se não se cuidasse, morta, não ia conseguir procurar a filha. "Então, juntei meus caquinhos para continuar procurando Fabiana".

'Transformei minha dor em luta'

Mães da Sé em encontro na Praça da Sé, em São Paulo, 2023 - Pedro Fratino - Pedro Fratino
Mães da Sé em encontro na Praça da Sé, em São Paulo, 2023
Imagem: Pedro Fratino

A busca pela filha levou Ivanise à novela "Explode Coração" que, ao término de cada capítulo exibia o depoimento de mães que buscavam por seus filhos. Para ela, aquela era a chance de encontrar a filha.

O depoimento, contudo, a levou para outro lugar. "Fui procurada por duas jornalistas e, no final da entrevista, deixei meu número de telefone para que quem estivesse passando pela mesma situação pudesse me ligar".

As ligações não pararam. Eram mães, pais, filhos, todos procurando seus desaparecidos. Ivanise, então, resolveu encontrar todos.

"Nos anos 1990, a Praça da Sé era o centro das manifestações da sociedade civil. Me lembrei das mães do Rio de Janeiro que se encontravam nas escadarias da Cinelândia. Então, nos encontramos nas escadarias da Catedral da Sé", conta Ivanise.

O que ela viu quando chegou ali na manhã de 31 de março de 1996 foi uma maioria de mães chorando e vendo nela a última esperança de encontrar seus filhos.

A partir daquele dia eu transformei a minha dor numa luta não só pela minha filha, mas por todas aquelas pessoas que estavam ali.

Ivanise Espiridião da Silva Santos, mãe da Fabiana

Até hoje, segundo Ivanise, o Mães da Sé — projeto que ela fundou naquela escadaria — já ajudou mais de 5 mil mães a encontrarem seus filhos. Essas vitórias parecem individuais, mas, na ONG, são coletivas.

Mães da Sé em reunião da Praça da Sé, em São Paulo - Pedro Fratino - Pedro Fratino
Segunda mulher da esquerda para a direita, Lucineia Angélica Maciel :"Estou atrás do meu filho desde 2013, ele saiu daqui para ir para o estado do Paraná e desapareceu. Desse dia para cá, não tenho mais sossego".
Imagem: Pedro Fratino

Durante manifestação na escadaria no fim de abril, Ivanise junto a outras mães comentavam sobre Dona Celina que tinha, enfim, encontrado seu filho. "Glória a Deus", "olha que maravilha", "que benção", ouvia-se entre as mães.

Quando uma mãe encontra seu filho, a sensação é de dever cumprido, é uma felicidade que se multiplica, é a nossa esperança de que uma hora vai chegar a nossa.

Ivanise Espiridião da Silva Santos, mãe da Fabiana

'Aprendi a dividir a minha dor'

Mães da Sé em encontro na Praça da Sé, em São Paulo - Pedro Fratino - Pedro Fratino
Mães se apoiando em manifestação na Praça da Sé
Imagem: Pedro Fratino

Até o momento em que foi gravar sua participação na novela "Explode Coração", Ivanise sentia que não podia compartilhar seu sentimento de perda com ninguém. Seu marido não compreendia sua dor, ninguém compreendia.

"99,9% dos casos de desaparecimento quem vai atrás é a mãe, o pai não vai. Ele tem a desculpa de que não pode faltar no trabalho. É a mãe que vai para a delegacia, é a mãe que passa a noite em claro", diz.

Na gravação, ela conheceu mais 72 histórias semelhantes à sua. Com o projeto Mães da Sé, o sentimento é o mesmo.

Essas mulheres têm um papel muito importante na minha vida. Foi com elas que eu aprendi a dividir a minha dor. Quando você compartilha da mesma dor com outras pessoas, você aprende a lidar com ela de uma forma mais amena e não se sente sozinha. Você percebe que não é só você que está passando por esse sofrimento.

Ivanise Espiridião da Silva Santos, mãe da Fabiana

"Eu tenho essas mulheres como minhas filhas, minhas irmãs, minhas companheiras", conta Ivanise apontando para as mães que a acompanham.

Uma delas é Isabel Cristina Silva, mais conhecida como Dona Isabel. "Oh, ela veio para cá sem dormir. Trabalhou a noite toda e veio direto", contou para a reportagem Ivanise.

"Na ocasião, não fui à delegacia, fiquei tipo boca a boca procurando. Aí uma moça no ônibus falou para mim que Ivanise, através das Mães da Sé, tinha ajudado a encontrar a mãe dela. Ela abriu as portas para mim, porque eu vim. Aí eu consegui fazer o boletim de ocorrência, consegui ir num programa de TV, consegui ser atendida por psicólogos", contou Dona Isabel.

A gente vive de fé e esperança, a última palavra vem de Deus

Isabel Cristina Silva, mãe do Thiago

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