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'Mestra dos jacarés' escapa de acidente aéreo e de mordidas do animal

Zilca Campos - Arquivo pessoal
Zilca Campos Imagem: Arquivo pessoal

Beatriz Mazzei

Colaboração para Ecoa

15/05/2023 06h00

Estimada em mais de 3 milhões, a população de jacarés do Pantanal brasileiro é cem vezes maior que a população de pessoas de Poconé, a cidade natal de Zilca Campos, uma das maiores pesquisadoras sobre conservação e manejo de jacarés do Brasil. São mais de 30 anos de carreira na Embrapa Pantanal dedicada à produção científica.

A especialista é tão fundamental para os estudos sobre o animal no país que seu nome batiza o "Prêmio Zilca Campos de Conservação dos Crocodilianos do Brasil", que consagra anualmente pessoas que desempenharam um papel importante na conservação dos crocodilianos brasileiros.

Se a ideia que vem à cabeça quando se fala em ciência é coberta por equipamentos de alta tecnologia, durante a infância de Zilca Campos, essa realidade não chegava nem aos televisores, ausentes na época.

Sem nenhum tipo de comunicação com o mundo para além de Mato Grosso, a menina Zilca usava seu tempo escrevendo poemas e histórias. No seu grupo de colegas, seguir os estudos não parecia ser uma opção, sobretudo para as garotas.

Zilca Campos - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Zilca Campos
Imagem: Arquivo Pessoal

"Da minha turma de escola, a maioria se casou e virou dona de casa. Mas eu sempre fui rebelde. Se seguiam um caminho, eu tentava outro", conta.

Depois de fazer judô e karatê, Zilca fez diferente outra vez sendo uma das poucas mulheres a ingressar em uma universidade nos anos 70. Entrou no curso de engenharia florestal na Universidade Federal de Mato Grosso, fez mestrado em Biologia no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia e tornou-se doutora em ecologia pela Universidade Federal de Minas Gerais.

Caçadores armados: perigo para os jacarés e pesquisadores

Zilca entrou na Embrapa Pantanal como bolsista em um projeto de manejo de capivaras. Contudo, no decorrer dos estudos, se interessou pelos crocodilianos, em especial os jacarés do Pantanal, uma espécie que já passou por muitas adversidades.

A primeira grande ameaça dos jacarés da região foi a caça ilegal. Na década de 80 e 90, caçadores da Bolívia e do Paraguai se deslocavam até a região em busca de jacaré para produção de couro, o que chegou a ameaçá-los de extinção.

Zilca estima que mais de 1 milhão de peles de jacaré saíram do Brasil na época. Como pesquisadora, ela se dedicou a acompanhar essa queda da população de animais.

"Essa época foi muito perigosa para os agentes de fiscalização e ativistas ambientais. Muitos morreram. Os caçadores andavam armados, ameaçavam e tinham facilidade em adentrar o território. Como o clima era de uma verdadeira guerra civil, nós procuramos dividir a pesquisa da fiscalização. Em um trabalho de campo à noite, chegamos a ver os caçadores andando nas florestas, mas fingimos que não vimos e seguimos. Eles eram muito valentes".

Depois que a caça foi controlada, veio a seca. A partir de 2000, os índices de chuva do Pantanal passaram a cair drasticamente. Além de morrerem em incêndios ocasionados pelas queimadas resultantes das secas, a falta de água é inimiga dos jacarés, que precisam do ambiente aquático para se alimentar e crescer.

Zilca estima que mais de 1 milhão de peles de jacaré saíram do Brasil entre as décadas de 80 e 90 - Getty Images - Getty Images
Zilca estima que mais de 1 milhão de peles de jacaré saíram do Brasil entre as décadas de 80 e 90
Imagem: Getty Images

Já na década atual, o desafio são as mudanças climáticas, o desmatamento e a construção das usinas hidrelétricas.

Além das usinas da parte alta do Pantanal, Zilca acompanha há 10 anos os impactos causados à população de jacarés que vivem no Rio Madeira e no Rio Xingu, no Amazonas, onde atualmente ficam as usinas de Santo Antônio, Jirau e Belo Monte.

Uma parte da biologia está sendo impactada porque houve uma perda do ambiente de reprodução dos jacarés, de acordo com a pesquisadora. As usinas causaram alagamentos, que por sua vez, inundaram as margens dos rios, locais onde os jacarés colocam seus ninhos.

Temos que tentar minimizar esses impactos ou encontrar fontes de energia mais limpas. As pessoas não entendem como essa produção de luz elétrica é danosa para o meio ambiente. É uma destruição muito grande, tanto para a fauna quanto para a vegetação. Zilca Campos

Mulher no campo

Tudo que Zilca sabe, viu de perto. Quando chegou para trabalhar na área, viu uma sala cheia de homens e apenas uma mulher.

"Me olhavam desconfiados e isso me mantém até hoje quando estou em campo no meio de muitos homens, mas desde o começo eu fui ousada. Eu ia, acampava, armava minha rede e ficava lá o tempo que fosse".

A observação dos jacarés em seu habitat natural e a captura de algumas espécies para fins de pesquisa fazem parte do trabalho.

O pesquisador Guilherme Mourão, que também é referência na atuação com crocodilianos no Brasil, confirma que o grande diferencial da Zilca é o entusiasmo com o campo. Colega de trabalho de Zilca há décadas, ele conta que em seu primeiro dia como estagiário, ela o fez passar dois apertos.

Zilca Campos - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Zilca Campos
Imagem: Arquivo Pessoal

"Primeiro, fui com ela fotografar um ninho de jacarés. Chegando até lá, esse ninho ficava no meio de um espinheiro, então, enquanto eu buscava os ovos no meio daqueles espinhos, de repente ela grita 'Corre que lá vem a jacaroa!", e lá fui eu correr no meio dos espinhos. Depois, à noite, ela disse: 'Estou indo com dois ajudantes tirar jacarés de um experimento. Quer ir?'. Topei. Quando dei por mim, estava com água na altura do peito em um rio escuro sem saber se ali tinha piranha, sucuri...".

As aventuras na floresta também já colocaram a vida de Zilca em risco. Antes do advento dos drones, as contagens das populações de jacaré eram feitas de helicóptero ou aviões ultraleves que sobrevoavam próximo à água, para que pudessem enxergar os animais. Em uma dessas missões, em um pântano no Rio Paraná, o piloto foi picado por uma abelha e era alérgico. Ele se desesperou e o helicóptero quase caiu.

"No fim encontramos uma área seca e ele conseguiu pousar. Foi um sufoco. Naquele dia eu achei que eu ia morrer. Também já quase morri afogada quando caí de uma canoa. Mas depois tem tanta recompensa, que a gente esquece e vai de novo", conta sorrindo.

Apesar dos sustos, ela nunca se envolveu em acidentes envolvendo jacarés, apesar de vários colegas já terem sido alvo de mordidas graves. Para a pesquisadora, os ingredientes do sucesso são simples: medo, respeito e coletividade.

Nós lidamos com vida selvagem, então precisamos ter muito respeito e cuidado. No fim das contas, não é sobre ser alto ou forte, é sobre as técnicas corretas. Uma boa equipe também é fundamental. Você não consegue fazer nada sozinho. Depende do seu time". Zilca Campos

Influência para quem chega

O que Zilca teve que aprender na prática virou conhecimento teórico. Na academia, os poemas de criança deram espaço para mais de 170 publicações científicas feitas com colegas de profissão, que trazem informações sobre ecologia, conservação e manejo do Jacaré do Pantanal e de outras cinco espécies de outros biomas do Brasil.

Toda a produção de conhecimento fez com que Zilca fosse orientadora de mais de 30 outros pesquisadores e colecionasse, ao longo da vida, uma série de "filhos e filhas científicas".

Zilca Campos - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Zilca Campos
Imagem: Arquivo Pessoal

Zilca foi "mãe científica" de Fábio Muniz, Dr. em Genética, Conservação e Biologia Evolutiva, que a descreve como uma pessoa ética, humana, justa e apaixonada pelos animais, pelo trabalho e pela ciência.

"Ela é uma grande inspiração por vários motivos, entre eles a disciplina e a resistência. Muita gente olha para ela, vê uma pessoa baixa e magrinha e não imagina que quando estamos no campo, ela é a mais resistente de todos nós. Até pessoas que são fisicamente mais fortes reclamam e ela nunca reclama, segue firme".

Pelo trabalho, Zilca também é detentora do prêmio internacional "Castillo's Conservation Prize", conferido pelo Grupo de Especialistas em Crocodilianos da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN).

Apesar do reconhecimento entre os pares, Zilca é uma pessoa que prefere os bastidores. Reservada, ela só diz que só gosta de compartilhar seus feitos para inspirar a nova geração

Quero que eles, e principalmente elas, saibam que é possível. Precisamos valorizar nossos cientistas porque se não fica parecendo que brasileiro não faz ciência. No Brasil tem muita ciência sim. Zilca Campos

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