'O bolsonarismo é a forma mais bem acabada da miséria política do Brasil'
No dia 11 de maio, o presidente Lula enviou ao Congresso Nacional o texto do Acordo de Escazú, que fortalece os vínculos entre políticas públicas de direitos humanos e a proteção ambiental. O tratado também visa trazer mais segurança aos ambientalistas, que têm sido alvos de ameaças e assassinatos no Brasil.
Em visita a Buenos Aires, na Argentina, o ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, recebeu a notícia com otimismo, afirmando ser uma "grande vitória".
"Não estou dizendo que uma norma jurídica, seja ela qual for, vai mudar a história. Isso é fruto de uma luta política que clama por proteção por parte do Estado. Agora, com base política e institucional, a luta ganha outro patamar", afirmou nesta entrevista exclusiva a Ecoa.
Silvio afirma que não tem a pretensão de salvar o mundo, mas tem suas concepções sobre os caminhos que podem ajudar a construir uma sociedade que não seja uma presa fácil para regimes autoritários e onde a violência deixe de ser algo normalizado. E dentre os caminhos propostos pelo ministro, está o reconhecimento do passado racista para entender o presente e mudar o futuro.
Ecoa: O que pode mudar no Brasil com o Tratado de Escazú?
Silvio Almeida: Só do presidente ter enviado essa mensagem ao Congresso Nacional foi uma grande vitória. Acredito que abra um capítulo muito interessante na história do Brasil, porque vincula a proteção dos direitos humanos com a pauta ambiental. O tema tem muita relevância por causa do momento de violência sistemática contra os ambientalistas.
Todo o país que faz parte do tratado tem que estabelecer regras para a proteção dos defensores dos direitos humanos, o que não temos ainda no Brasil.
Com o tratado, teremos a obrigação de sentar na mesa, como governo federal e estados, e discutir políticas públicas. O que é fundamental para mim é que vamos precisar de orçamento e investimento para criar esse sistema protetivo.
Não estou dizendo que uma norma jurídica, seja ela qual for, vai mudar a história. Isso é fruto de uma luta política que clama por proteção por parte do Estado. Agora, com base política e institucional, a luta ganha outro patamar.
Como grandes defensores da biodiversidade e que sofrem ataques recorrentes, os indígenas entrariam nessas políticas de proteção aos ambientalistas prevista no tratado?
Eu entendo que sim. Veja só. Você já colocou um patamar interpretativo que a gente tem que defender. Abre-se todo o tipo de espaço.
A pauta indígena está conectada também com o racismo e todos seus efeitos colaterais. Portanto, como você vê o papel do racismo na construção da sociedade brasileira?
O racismo está na base dos problemas da América Latina e tem forte influência na instalação dos regimes autoritários. A morte e o assassinato estão incorporados à vida social e isso tem a ver com o fato de que somos fundamentalmente negros e indígenas.
Essa desvalorização da vida facilita a atuação de regimes ditatoriais e antidemocráticos. Então, a gente precisa olhar para a escravidão transatlântica e para os massacres dos povos indígenas para chegar até as ditaduras que marcaram a América Latina.
E para fazer essa política de memória, de reparação e não repetição, é preciso também reconfigurar o que chamamos de democracia.
Então, vamos ter que olhar necessariamente para a questão racial para que a gente supere as violências que nos constituem. Se não pensar a questão racial não vamos conseguir superar a desigualdade, pobreza, a violência e autoritarismo.
Numa sociedade que desvaloriza a vida é muito fácil matar pessoas, violentar mulheres... Existe um fio muito apagado que liga o colonialismo na América do Sul com os regimes ditatoriais.
Você acredita que o bolsonarismo é uma das consequências do racismo?
O bolsonarismo é a forma mais bem acabada da miséria política e moral do Brasil. Ele é uma mistura de autoritarismo com desigualdades que constituem a nossa história. Ele é o resultado do racismo que estrutura nossa vida social. Quando a gente não tem os instrumentos de contenção dessas variantes estruturais da história brasileira, você tem surgimento dessa versão do fascismo brasileiro.
E quais as próximas ações práticas do ministério?
Terei uma reunião de trabalho com a ministra Anielle Franco nesta semana. Vamos discutir formas de colaboração na área da educação e dos direitos humanos, formas de cooperação técnica e programas como o de enfrentamento à tortura, pessoas privadas de liberdade e o Juventude Negra Viva, além de falar sobre medidas socioeducativas, dizendo para as crianças e adolescentes como integrar isso com as questões relacionadas ao racismo.
Como é ser ministro dos Direitos Humanos em um mundo com tantos problemas?
Eu vou repetir uma fala do Ailton Krenak que eu gosto: A nossa tarefa aqui é adiar o fim do mundo, só isso. Se eu conseguir adiar o fim do mundo já está bom. Foi isso que meus antepassados fizeram.
Precisamos fazer com que a próxima geração tenha uma pretensão maior do que a nossa. A gente não tem que ter a pretensão de salvar o mundo. Precisamos fazer com que as pessoas que vieram depois de nós tenham uma vida viável, uma vida decente.
E faremos isso construindo novos parâmetros, novas formas de fazer política e de pensar os direitos humanos, não só na América Latina, mas no mundo todo. Como professor, como escritor, eu tenho muita essa preocupação de fazer essa relação entre teoria e prática. Eu acho que não tem outra saída.
Siga Ecoa nas redes sociais e conheça mais histórias que inspiram e transformam o mundo
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.