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'Colocaram uma vítima de racismo para conviver com seus agressores'

Fred Nicácio: "Ninguém teve a audácia de levantar pautas raciais no BBB como eu fiz" - Sergio Baia
Fred Nicácio: 'Ninguém teve a audácia de levantar pautas raciais no BBB como eu fiz' Imagem: Sergio Baia

21/05/2023 06h00

Fred Nicácio foi um personagem único na história do Big Brother Brasil. Ele saiu e voltou para o reality show três vezes na mesma edição, algo inédito. Isso revela bem os sentimentos que ele despertou no público.

Amado e odiado ao mesmo tempo, o médico se envolveu em diversas "tretas" do programa por seu jeito tido como debochado e até arrogante. E, ao mesmo tempo que surgiam memes e brincadeiras por sua participação na casa, Fred fez com que o público tivesse que lidar com várias pautas raciais, entre elas a de racismo religioso.

"O Big Brother é uma fatia da sociedade atual, o que acontece aqui fora vai acontecer dentro no programa. Se acontece racismo estrutural aqui fora, acontece lá dentro", diz o ex-participante.

Em conversa exclusiva com Ecoa, Fred Nicácio contou como foi para ele lidar com questões raciais dentro do programa e o que espera para as próximas edições do BBB quando o assunto é participantes negros.

Ecoa - Como você avalia a evolução das pautas raciais dentro do BBB de outras edições até a sua?

Fred Nicácio - As pautas raciais sempre estiveram presentes no Big Brother Brasil, porém eu acho que estamos conquistando lugares de fala com pessoas que sabem falar nesses lugares, porque não adianta apenas você ter lugar de fala e não saber o que falar.

Ninguém tinha tido a audácia e a coragem de levantar pautas raciais de maneira explícita como eu fiz. Isso é você colocar o dedo na ferida e mostrar na prática como a sociedade brasileira é. Então, eu acho que a minha participação no Big Brother vem desse lugar de missionário, eu cumpri uma missão.

Existia uma meta para mim que não era o prêmio porque nem sempre quem ganha vence e eu saí e voltei três vezes para conseguir completar essa missão de levar essas pautas que levariam décadas para serem levantadas na TV aberta em horário nobre.

O racismo é velado só para quem está sendo racista porque para quem está sentindo não tem nada de velado, é muito nítido.

Você estabeleceu que teria essa missão desde quando topou participar no programa ou foi algo que você descobriu lá dentro?

Desde de antes. Quando veio o convite, eu já sabia que linha iria seguir lá dentro. Existe uma performance de cada um e a minha performance de vida é essa, faz parte de quem eu sou e de onde vim. Não teria como eu agir diferente lá dentro de como eu ajo aqui fora, seria contraditório com a minha verdade.

Fred Nicácio: ‘As pessoas não estão acostumadas com pessoas pretas com autoestima’ - Sergio Baia - Sergio Baia
Fred Nicácio: ‘As pessoas não estão acostumadas com pessoas pretas com autoestima’
Imagem: Sergio Baia

No programa, as pessoas te associavam a uma pessoa arrogante enquanto algumas pessoas que estavam ali e que tinham posturas de desrespeito a outras não eram vistas dessa mesma forma. Como você avalia isso?

As pessoas não estão acostumadas a verem pessoas pretas com autoestima. Na minha chamada do programa, quando eu estava me anunciando, eu já dizia que sou espaçoso, sem me diminuir para ficar bem em lugares que não são meus. Eu sou do meu tamanho e quem se incomoda não tem como me diminuir.

E essa certeza de quem se é pode soar como arrogância para muitas pessoas que não tem certeza de quem são ou que não gostam de ouvir alguém como eu tendo certeza de quem é. Humildade mesmo é você saber reconhecer suas qualidades.

Essa arrogância também era apontada em você na maneira como você falava, muitas vezes de forma debochada.

Eu faço uso do constrangimento pedagógico. Quando alguém me pergunta como eu lavo meu cabelo com dread, o que essa pessoa está querendo dizer é como eu lavo esse cabelo de preto que deve ser sujo e fedido, aí entra o que as pessoas gostam de falar que é deboche e é mesmo, mas eu chamo de constrangimento pedagógico.

Nesses casos, eu respondo: "Ué, gente, você não lava o cabelo? Você usa a água primeiro, depois passa o shampoo na mão, passa ele no cabelo até fazer espuma e enxagua com água. Você não lava o cabelo assim?"

É um constrangimento para que a pessoa entenda a merda que ela está perguntando. E quando eu vou falar essas coisas, eu boto o palquinho mesmo, falo para todo mundo ouvir porque tem um monte de branco que precisa ouvir isso.

Nesta edição, três casos que envolviam violência contra a mulher foram tratados de forma assertiva. Para você, por que casos que foram julgados como racismo não tiveram as mesmas punições?

Essa é uma pergunta delicada porque como eu gostaria que agissem não necessariamente vai ser como as pessoas vão agir. Mas acredito que não enxergar o tamanho da dor de um ato racista é algo estrutural. As pessoas não vão lidar com um ato de racismo religioso de maneira tão séria como lidam com ato de importunação sexual.

Quando eu fui para casa do reencontro com os outros nove participantes, ninguém ali fazia ideia de como seria aquela dinâmica, nós tínhamos direito de desistir logo no primeiro dia e isso nos foi dado, só que eu acho que é muito improvável que alguém colocasse, por exemplo, a Dania para conviver com os dois importunadores sexuais dela por 48 horas, mas se coloca uma vítima de racismo religioso para conviver com seus três agressores. Aí você consegue perceber que existe essa diferença na hora de catalogar o nível de dor.

É sempre mais fácil me esconder, não me ouvir e me silenciar para que a sociedade continue como está perpetuando privilégios em pessoas que não tem o menor talento nem o menor carisma e só são brancas.

Na casa do reencontro você ficou visivelmente abalado, queria entender os motivos que te levaram a continuar ali.

Eu costumo falar que não tem como você fazer um rio ir para trás. Oxum sempre segue para frente, as águas de Oxum são como um rio, Oxum é o próprio rio, vai sempre para frente.

Eu não tinha como fazer a água do rio voltar, não tinha como desistir, existia um propósito para que eu tivesse ali. A minha vida tem essas percepções do que eu posso aprender com os Orixás e eu pensei que não tinha o direito de desistir. Foi esse o motivo que me fez continuar, minha fé.

BBB 23: Fred Nicácio chora na Casa do Reencontro - Reprodução/Globoplay - Reprodução/Globoplay
Fred Nicácio se emciona na Casa do Reencontro: "Tudo que passei ali foi uma merda, saí de lá com vários gatilhos novos e vários gatilhos antigos reativados"
Imagem: Reprodução/Globoplay

Ainda na casa do reencontro você falou que sua equipe jurídica estava lidando com as denúncias de racismo religioso contra a Key, Cristian e Gustavo. Como está esse processo e o que te levou a isso?

Eu não posso dar muitos detalhes sobre o que está acontecendo na Justiça, mas decidi tomar essa atitude porque essas pessoas precisam prestar contas para a sociedade do que fizeram. A branquitude tem a certeza de que isso não vai dar nada, então, se eu deixo isso passar, eu reforço essa ideia.

"Ah, Fred, mas você vai ter dor de cabeça com isso para no final não dar em nada", se acontecer isso, vou mostrar que mais um caso de racismo provado com vídeo, com áudio, com os nomes das pessoas não deu em nada. Então, caramba, o que precisa acontecer? Como que a gente precisa provar? Quando essas pessoas vão ser punidas? É nesse intuito de levantar também este questionamento, seja qual for o resultado.

Você teve alguns embates dentro da casa com algumas pessoas pretas por entender que elas não viam questões racistas dentro do programa que para você eram muito nítidas. Como foram esses embates para você?

A falta de letramento racial para pessoas pretas não é culpa delas, isso é reflexo do racismo que faz com que uma pessoa que está passando por uma situação de racismo não consiga se defender até o ponto em que aquilo vira uma coisa normal para ela.

Ela ser abordada no mercado vira uma coisa normal, ela tomar dura da polícia vira uma coisa normal e essas coisas não são normais, são microviolências raciais que a gente sempre sofre. E é para esses pretos, também, que eu estava ali no programa, para poder mostrar o que estava acontecendo.

Fred Nicácio: "As pessoas não sabem lidar com um preto intelectual" - Sergio Baia - Sergio Baia
Fred Nicácio: "As pessoas não sabem lidar com um preto intelectual"
Imagem: Sergio Baia

Quando você voltou para a casa pela terceira vez, você chegou a dizer que queria uma final só com pretos. Depois dessa fala, várias pessoas negras começaram a ser eliminadas. Para você, como sua fala repercutiu dentro e fora da casa e por quê?

As pessoas acreditam que existe racismo reverso. Só que não existe uma supremacia preta que oprima uma minoria branca, nós [pessoas negras] somos maioria populacional mas não maioria representada na política, na medicina, no judiciário. Então, não existe esse racismo reverso. E por que não uma final só de pretos? Tivemos diversas finais só com brancos.

Quando você ganhou o prêmio de Ranço no reencontro com os participantes do BBB depois do final do programa, você disse que "falar verdade que precisam ser ditas incomoda". A quais verdades você estava se referindo e por que elas incomodam?

Acho que não dá nem para listar essas verdades porque é o meu existir, a minha presença como homem gay, preto, médico, comunicador e gago que incomoda. Eu sou a frustração de uma sociedade inteira, é difícil me engolir porque eu sou mesmo indigesto.

Acho que quem viu o programa, viu o quanto de coisa que a sociedade precisou engolir a partir de mim e é isso, não se faz rebelião sendo amado por todos e eu não vou fazer rebelião abrindo mão da minha intelectualidade e da nobreza que me cabe porque as pessoas não sabem o que fazer quando lidam com preto intelectual.

O que você espera ver nas próximas edições do programa sobre esse assunto?

Eu espero que continue essa porcentagem de pessoas pretas, isso é importante porque mostra, sobretudo, a diversidade de pessoas pretas para que a gente não perca nossa humanização e as pessoas pensem que preto é tudo igual porque não somos.

E também desejo que mais pessoas levantem essas pautas raciais porque é saudável que essas discussões sejam vistas.

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