Ela não tinha nem e-mail e hoje ensina mulheres a serem profissionais de TI
Elas não tinham e-mail, não sabiam configurar um perfil nas redes sociais e nem pagar contas online. Mas a vida de Aline, Geralda e Dayane mudou rapidamente. Em três meses, além de ficarem aptas a concluir essas tarefas, elas também se tornaram capazes de ensiná-las depois que se tornaram 'tech girls': professoras, comerciantes e profissionais da Tecnologia da Informação (TI).
O mercado de TI é um dos que mais cresce no país e a mão de obra qualificada é escassa. De acordo com um estudo de 2021 da Brasscom (Associação das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação e de Tecnologias Digitais), ate 2025 o mercado brasileiro de tecnologia terá ofertado 797 mil vagas, e o número de profissionais capacitados ficará abaixo da demanda. O déficit, em cinco anos, deverá ser de 530 mil vagas.
Mas nem foi pensando nisso que essas mulheres escolheram aprender TI. Elas viram na oportunidade uma chance de passar a usar o computador sem depender de ninguém.
"Foi o meu marido quem criou meu e-mail, e eu nem sabia como trocar a senha. Se hoje estou ensinando isso e muito mais para outras mulheres é porque houve acolhimento e muito estudo", conta a hoje professora Aline Gomes Soteras, 31 anos.
Ela foi uma das formandas da turma do ano passado da capacitação profissional na área de tecnologia da informação na unidade de São Paulo da startup Tech Girls. Depois de concluir o curso, Aline foi convidada a continuar na escola como assistente, e hoje aprende a programar software enquanto dá aulas a novas alunas do programa.
"Eu tinha um curso básico de informática, mas fugia de empregos que precisavam trabalhar com o computador. Nunca pensei em carreira, trabalhava para pagar as contas e cuidar do meu filho. Hoje eu ensino outras mulheres a serem profissionais de TI. Nunca imaginei isso", conta.
Desconforto e preconceito
O projeto Tech Girls começou como um trabalho voluntário da profissional de marketing, e agora desenvolvedora de software, Gisele Lasserre, de 45 anos. Ela diz que sentiu na pele o desconforto de ser uma mulher querendo aprender TI na vida adulta.
Durante um curso que fez sobre o tema, ela conta que falava com o instrutor que tinha dúvida ou dificuldade com um assunto, "e ele respondia que era um curso rápido, e que não dava tempo recapitular". Era 2017 e ela se lembra do período como uma época de muito estresse. "Talvez por isso as mulheres não se aventuram tanto em TI", acredita.
Foi então que ela decidiu passar adiante o que aprendeu com muito esforço nessas aulas e fundou, em Curitiba, a Tech Girls, uma escola de informática gratuita para mulheres. Hoje, além da capital paranaense, já tem unidades em São Paulo, Taubaté, no interior de São Paulo, e Florianópolis, em Santa Catarina.
Assim que se formou, começou a dar aulas em comunidades periféricas, mas percebeu uma grande resistência das mulheres em se aproximarem e aceitarem a ideia, mesmo o curso sendo gratuito.
Gisele teve a ideia, então, de trazer algo do dia a dia delas como "quebra-gelo", e criou inicialmente um módulo chamado bijouxtech, uma oficina de bijuterias feitas com lixo eletrônico recebidos pelas empresas que ela conhecia.
A TI exige um trabalho meticuloso e muito manual, coisa que essas mulheres já fazem diariamente quando cuidam da casa, costuram ou fazem doces para vender.
Gisele Lasserre, idealizadora da Tech Girls
O segundo módulo é de empreendedorismo digital. Quem segue no curso aprende ainda os módulos 3 e 4, sobre hardware e software respectivamente, e leva para casa o notebook que recuperou e programou durante o curso.
Renda e auto estima elevada
Geralda Maria da Silva, 56 anos, conta com orgulho das duas "joias" que fez com a sucata dos eletrônicos na turma de dezembro da oficina bijouxtech, em São Paulo, e revela que não pretendia seguir para os módulos seguintes, mas se sentiu acolhida e decidiu ficar.
"Todo dia eu pegava dois ônibus para chegar lá, vinha apertada igual sardinha, mas faria tudo de novo. Aprendi muita coisa com elas e criamos um laço de amizade também", contou. Ela vendia produtos de beleza por catálogo de maneira presencial, agora criou a própria página nas redes sociais e faz vendas online. "Eu só sabia usar o whatsapp, hoje vendo por Pix, por maquininha, mando catálogo", comemora.
A colega de turma delas, Dayane Alves, 32 anos, conta que enfrentava uma depressão por estar desempregada quando recebeu o convite para entrar na turma. "Estar com aquelas mulheres incentivando, ajudando e aprendendo duas vezes por semana era o meu momento de alegria", recorda. Hoje ela também pretende continuar estudando e montou o próprio site para vender seus produtos de design.
"Eu também consigo presentear minha filha de 10 anos com as bijouterias e estou ensinando-a a digitar. Sem contar que trouxe para casa um computador que era lixo eletrônico e que eu mesma formatei. Isso não tem preço. A Tech Girls transformou a minha vida!".
No período de 2017 a 2023 já foram 580 vidas femininas transformadas em quatro escolas próprias Tech Girls. E, como houve muita procura espontânea para acelerar a expansão para outras cidades nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, Gisele planeja uma franquia social, prevendo chegar até o final deste ano com 10 unidades no Brasil. (para saber mais, acesse o site do projeto).
Lixo eletrônico é matéria-prima
Para que essas iniciativas sejam financeiramente sustentáveis, empresas que compactuam com a temática de tecnologia verde realizam projetos em parceria com a Tech Girls.
A parceria envolve desde a doação de lixo eletrônico para serem usados nas oficinas, reaproveitamento de peças ou restauro do computador, bem como disponibilidade de vagas no quadro de funcionários, patrocínio e doações em dinheiro para suprir os gastos das escolas.
Entre essas empresas apoiadoras está o Grupo Boticário que, pelo segundo ano consecutivo, contatou as alunas do projeto especializadas em manutenção de notebooks para revisarem os equipamentos que estavam encostados na empresa e consertá-los para a terceira edição do Programa Desenvolve.
O Desenvolve é um programa gratuito de formação e inclusão em tecnologia do Grupo Boticário que destina vagas na escola de tecnologia Alura a pessoas em situação de vulnerabilidade que têm o sonho de iniciar uma carreira na área, com a chance de serem contratadas pelo grupo após um processo de seleção.
E o que não falta é matéria-prima. De acordo com o estudo E-waste Monitor 2020, estima-se que em 2030 o mundo deverá produzir um total de 74 milhões de toneladas de lixo eletrônico - número que é quase o dobro do que produzimos hoje.
O mesmo relatório aponta que o Brasil é o quinto maior produtor de lixo eletrônico no mundo e o maior na América Latina, descartando cerca de 2 milhões de toneladas de resíduos todo ano.
"Na contramão desses números, nosso país recicla apenas 3% desse total. A Tech Girls está habilitada pela secretaria do meio ambiente para atuar desde a coleta, classificação, bem como a destinação final promovendo uma segunda vida aos equipamentos considerados obsoletos para algumas empresas e pessoas", explica Gisele.
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