Portuguesa faz filme sobre como a família ficou rica escravizando negros
Foi em uma conversa informal com a avó, aos 18 anos, que a jornalista portuguesa Catarina Demony, 30, descobriu que sua família materna teve um papel importante em um dos capítulos mais violentos da história da humanidade: a escravização e o tráfico de povos africanos.
"Não tinha expectativa de que ela me contaria isso e, mesmo quando falou, eu não sabia da dimensão do envolvimento dos meus familiares no comércio de escravizados no Atlântico", conta em entrevista a Ecoa.
Saber das origens de seus antepassados foi como a peça que faltava no quebra-cabeça da sua mente. "Durante a minha adolescência, eu sempre me questionei muito sobre o passado da minha família, porque sabia que, em Angola, ela era bastante abastada, com posses. Sempre me perguntei: de onde vinha esse dinheiro?".
Catarina é descendente da família Matoso de Andrade e Câmara, que, segundo historiadores, foram grandes comerciantes de pessoas escravizadas entre os séculos 18 e 19 — eles mantiveram as atividades mesmo quando o tráfico foi proibido pela coroa portuguesa.
Compartilhando sua história num documentário
Após a revelação da avó, Catarina decidiu usar seu conhecimento profissional, como correspondente da Reuters, para transformar esse enredo no documentário "Debaixo do Tapete", lançado neste ano, que mistura a narrativa de sua família com a história da escravização e as suas consequências para Portugal.
Em dez anos de investigação, a jornalista juntou documentos de historiadores e do Arquivo Nacional Torre do Tombo, em Lisboa, e entrevistou familiares, como a avó, que trouxe a história à tona, além da bisavó.
Do soldado Matoso de Andrade, primeiro antepassado a chegar em Angola, no século 18, a José Maria Matoso de Andrade, último membro da família que trabalhou no tráfico transatlântico, calcula-se que dezenas de milhares de pessoas foram escravizadas pelos Matoso de Andrade e Câmara.
"Os arquivos mostram que alguns navios de meus antepassados tinham capacidade de transportar 340 pessoas e foram inúmeras viagens transatlânticas", diz a jornalista.
Após a morte de José Maria, aos 42, a família deixou Angola logo após a Revolução dos Cravos, em 1974, que colocou fim ao Estado Novo e libertou as colônias portuguesas. Catarina é parte da primeira geração a nascer em Portugal.
Uma cultura de silenciamento em Portugal
Mais do que se redimir ou lucrar com uma polêmica pessoal, a jornalista quer fomentar o debate sobre o impacto da escravização na vida de pessoas negras, principalmente em Portugal.
"Essa história podia ser um livro, uma reportagem, mas quis contá-la em um formato com mais apelo para que pudéssemos mostrá-la nas escolas", diz.
Assim como Catarina, muitos jovens portugueses não têm ideia de como o tráfico de escravizados reverbera até hoje na sociedade.
"Não me recordo de, na escola, ter aprendido sobre a brutalidade que foi a escravatura. Era ensinado como algo que se fez a povos que não eram 'civilizados', que os religiosos estavam a convertê-los ao catolicismo", lembra.
Em Portugal, até hoje prevalece uma cultura de silenciamento sobre o passado, que reverbera na própria família da jornalista.
"Meus avós e meus pais me deram muito apoio para que eu fizesse essa investigação, mas teve muita gente que não quis falar, não quis se associar a esses antepassados", conta.
Responsabilização pelos antepassados
Para a jornalista portuguesa, fazer o filme foi um modo de se responsabilizar pelo que seus antepassados fizeram, seguindo os passos de exemplos como a jornalista britânica Laura Trevelyan.
Após descobrir que sua família tinha escravos em uma fazenda em Granada, no Caribe, Laura fez uma doação de 100 mil libras (por volta de R$ 616 mil) a um fundo da comissão de reparações da comunidade caribenha.
"Infelizmente, minha conta bancária não permite que eu faça uma reparação financeira, mas posso dar a minha contribuição para levantar essa conversa e exigir que essas reparações históricas aconteçam por meio de políticas públicas", diz Catarina.
Para ela, essa é a obrigação de outras famílias que, no passado, tiveram envolvimento com a escravatura e o tráfico de pessoas escravizadas.
"Pedir desculpas, pagar uma indenização é a parte mais fácil, mas elas também devem trabalhar ativamente para que haja uma reparação concreta, com impacto de longo prazo", afirma.
Por enquanto, o documentário está em festivais e não foi lançado ao grande público. O trailer pode ser visto no site do filme.
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