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Pouca comida, sem médico e solidão: os perrengues de explorar a Antártica

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Imagem: Getty Images

De Ecoa, em São Paulo (SP)

05/06/2023 06h00

Na Antártica é possível pensar sobre a natureza do silêncio. Ali, não há qualquer ruído a centenas de quilômetros. "Qual é o ruído do silêncio?", costumam-se perguntar cientistas que vão até lá. Com um pouco de concentração, é possível identificar que, na verdade, há nele um metrônomo tímido, incapaz de ser ouvido na cidade: os batimentos do próprio coração.

A sensação é descrita pelo cientista Francisco Eliseu Aquino, geógrafo, doutor em climatologia, diretor do Centro Polar e Climático, e estudioso do aquecimento global e da formação de ciclones no continente gelado - e de seus impactos no meio ambiente.

Os estudos feitos por ele acontecem na Criosfera 1, uma base científica instalada a mais de 2.500 km da Estação Antártica Brasileira Comandante Ferraz e a 670 km do polo sul. Chegar lá tem uma distância equivalente a sair de São Paulo e ir até Buenos Aires pelo continente adentro.

Na ausência de um hotel - ou qualquer outra infraestrutura -, é o lugar mais confortável para se hospedar. A base tem placas de energia solar e eólica para gerar energia elétrica e aquecimento. A estrutura abriga cientistas e expedições que duram de 15 a 60 dias.

A base parece distante, como uma colônia espacial, mas os fenômenos que a flagelam estão chegando até nós de maneira cada vez mais drástica.

Francisco Eliseu Aquino trabalha em base científica instalada na Antártica - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Francisco Eliseu Aquino trabalha em base científica instalada na Antártica
Imagem: Arquivo pessoal

Nascido no Rio Grande do Sul, Eliseu lembra que na infância assistia às nuvens, especialmente as cumulonimbus, e previa que elas logo desapareceriam em formato de chuva, como num movimento conscientemente coordenado.

A admiração e o medo do professor aos fenômenos somente aumentaram de escala. "Os ciclones têm uma razão de existir. A Antártica não é mais fria e a Amazônia mais quente porque existem trocas contínuas de massa ar, tanto no polo sul como no norte, operadas com eficiência pelos ciclones extratropicais".

Quando está na Antártica com um grupo de pesquisadores, Eliseu é um dos responsáveis por interpretar o movimento das nuvens, calcular o clima enviar informações ao avião que os transporta para onde chama de "meio do nada".

É preciso poupar recursos como gás de cozinha e alimentação caso o clima não permita que o avião pouse em segurança.

Se houver uma emergência médica, uma aeronave pode levar dias ou até semanas para aterrissar.

Cientista cava buraco na neve para pesquisas na Criosfera 1, base científica instalada na Antártica - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Cientista cava buraco na neve para pesquisas na Criosfera 1, base científica instalada na Antártica
Imagem: Arquivo pessoal

É difícil não questionar a própria mortalidade ao andar por um lugar como nenhum outro no planeta.

Uma das inspirações dos cientistas antárticos costumam ser culturas que respeitam e convivem com o gelo, como o povo Inuit no hemisfério norte — o termo esquimó caiu em desuso por possuir uma carga pejorativa, que significa "comedor de carne crua".

"Como os Inuit, aprendi a interpretar quando foi a última vez que nevou só de ouvir o clec-clec da neve ao caminhar", explica.

Quando a temperatura começa a cair para -20ºC, ele aposta em outros sentidos apurados na vivência com as camadas milenares de gelo: as pálpebras começam a grudar umas nas outras ao piscar e é preciso buscar por abrigo.

Na Criosfera 1, os cientistas fazem buracos no gelo para mapear a mudança de temperatura na região ao longo do tempo. Por exemplo: é possível confirmar se no último verão fez muito calor ao analisar o estágio de congelamento das últimas camadas de gelo.

Uma simples vala pode apresentar camadas formadas há séculos. É este estudo que permite confirmar que esse processo se acelerou nos últimos anos e que, após a Revolução Industrial, o mundo esquentou como nunca antes. Basta ir cavando, extraindo e estudando.

O professor descreve as experiências como uma "análise de um arquivo natural" que equilibra nosso planeta.

Nós devemos apenas ler o que a natureza está nos dizendo" , Francisco Eliseu Aquino, cientista

Cientistas próximos à Criosfera 1, base científica instalada na Antártica e a 670 km do polo sul - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Cientistas próximos à Criosfera 1, base científica instalada na Antártica e a 670 km do polo sul
Imagem: Arquivo pessoal

No passado, as expedições até a Antártica promoveram uma corrida semelhante à ida até a Lua.

Países como Rússia, Estados Unidos e Grã-Bretanha estimularam viajantes a explorar o continente e a chegar ao extremo sul do globo entre o século 19 e 20. O mito havia sido alimentado por volta de 1770, quando o capitão britânico James Cook desistiu, após três anos de tentativa, em encontrar o que suspeitavam ser um novo continente inóspito que lançava gelo pelo oceano.

Ao longo dos anos, cientistas tomaram o lugar dos exploradores — que eram até caçadores de focas — para estudar a fauna, o comportamento climático, geológico e de que forma o continente é alterado pela ação humana, mesmo inabitado.

Diferentemente do passado, as expedições atuais têm uma logística exigente. O transporte é feito por pilotos bem treinados para resgates arriscados e com baixíssima visibilidade.

Durante alguns destes voos, o céu branco iguala-se ao chão e é preciso habilidade para não se confundir, manter a altitude e evitar o choque contra platôs e formações elevadas.

Em 2007, Eliseu foi de avião a um destes platôs com 2 mil metros de altitude na Antártica acessível apenas por voo. As aeronaves possuem esquis acoplados para derreter levemente o gelo e facilitar o pouso neste tipo de superfície.

Cientistas na Criosfera 1, base científica instalada na Antártica e a 670 km do polo sul - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Cientistas na Criosfera 1, base científica instalada na Antártica e a 670 km do polo sul
Imagem: Arquivo pessoal

Mas, como fazia muito frio, assim o que avião pousou, o chão descongelou e rapidamente. Com vento cortante na cara a cerca de 80 km/h, Eliseu e mais dois companheiros cientistas, um carioca e um chileno, precisaram empurrar o avião até a decolagem.

Seria a primeira de muitas infelicidades desta expedição. Assim que a pesquisa foi encerrada, o trio acionou o avião via satélite. Ao avistá-lo, porém, as nuvens fecharam-se e o piloto os perdeu na nevasca.

Há um fato que não ajuda em nada: lá nascem e morrem ciclones semanais. "Eu estou no mar, que tem iceberg, e ainda por cima é um cemitério de ciclones extratropicais", comenta Eliseu sobre a dificuldade do resgate.

O avião, então, deu voltas para ver se o tempo melhorava, mas anunciou que voltaria depois. Restava apenas um dia de gás disponível para os membros da expedição. Era preciso poupá-lo e torcer para o tempo melhorar.

Após três dias, a aeronave conseguiu levá-los em segurança. Para estar apto a este evento é preciso passar por testes físicos e psicológicos para não colocar a vida em risco. A máxima entre cientistas é a de que não vale a pena morrer para publicar um artigo.

"Mas quando apresentamos nossa pesquisa na Península Antártica durante um congresso britânico, fomos muito elogiados. Todos diziam que queriam ter feito essa pesquisa, mas fomos questionados: 'quem eram os loucos o suficiente para ir até lá?", brinca o cientista.

Mapa onde fica o Criosfera 1 - BBC Brasil - BBC Brasil
Mapa onde fica o Criosfera 1
Imagem: BBC Brasil

De certa forma, os cientistas se arriscam nessas aventuras para confirmar que somos responsáveis por desequilibrar a "consciência" da Terra, uma força visível e responsável por gerar vida.

Até mesmo as calotas de gelo soterradas há milhares de quilômetros mantém um diálogo permanente com árvores da floresta amazônica.

"O desmatamento na Amazônia torna a América do Sul mais quente. Com isso, há interferência no sistema tropical inteiro, que se interconecta com todo o planeta", explica Eliseu.

Não se sabe se cientistas brasileiros irão retornar para o Criosfera 1. "A nível individual e coletivo, interromper o aquecimento global deve ser considerado uma bandeira quando se elege um vereador, um deputado. Toda a gestão pública tem que estar comprometida com a mudança climática", defende o pesquisador.

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Em celebração ao Dia do Meio Ambiente, Ecoa relembra histórias marcantes contadas por aqui que nos fizeram refletir sobre o assunto. Para saber mais sobre o trabalho da Criosfera 1, leia a reportagem completa aqui.

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