Cientista quer usar pó de planta para substituir o mercúrio no garimpo
Os cabelos alaranjados e o sotaque forte da professora, cientista e botânica Marta Pereira já são bastante conhecidos por garimpeiros ilegais de comunidades ribeirinhas ao longo do rio Madeira, ao sul do Amazonas.
Há 13 anos a gaúcha nascida em Bagé já entrou em centenas de pequenas balsas da região levando conscientização e propondo conversa com os extratores de ouro, cuja atividade, ilegal e criminosa, causa um desastre social e ambiental considerável no território.
Análises de briófitas dos barrancos do rio feitas pela pesquisadora revelam alta taxa de contaminação por mercúrio nos vegetais, que absorvem o metal do solo, do ar e da água. Mas Marta está em busca de uma solução.
Ela coordena um grupo de pesquisadores da UEA (Universidade Estadual do Amazonas) e UNIR (Universidade Federal de Rondônia) que está prestes a isolar a propriedade de uma outra planta, chamada pau-de-balsa, capaz de substituir o mercúrio no processo da formação da amálgama do ouro.
"Não se trata de uma descoberta, ela é usada há séculos na Colômbia para a produção do ouro verde, um ouro extraído de forma sustentável", explica.
Ainda que considerada um tanto utópica e de incentivo ao garimpo por alguns, ela segue fazendo parcerias com o governo local e a iniciativa privada. Ao todo, a equipe de marta conseguiu R$ 1 milhão da Fapeam (Fundação de Amparo à Pesquisa do Amazonas) e Fapero (Fundação Rondônia) para investir no projeto.
Precisamos começar. O garimpo não deveria existir, mas ele nunca vai acabar", Marta Pereira, cientista
Ecoa: Como o pau-de-balsa pode substituir o mercúrio no garimpo de pequeno porte?
Marta Pereira: Além de atingir a idade adulta numa média de seis anos e ter uma madeira ótima para a marcenaria e produção de barcos, essa espécie tem o maior potencial - dentre outras plantas analisadas - de juntar os micropedaços de ouro em amálgama, para a formação das pepitas para a venda.
Há cerca de um ano estamos estudando os elementos da planta, e agora conseguimos isolar o princípio que tem a propriedade de agregar o ouro. Uma vez concentrado, será transformado em pó, que, diluído em água, é aplicado na borra de areia, partículas de ouro e outros minerais; para juntar apenas o ouro.
Outra grande vantagem é que o uso do extrato elimina a necessidade da queima que os garimpeiros fazem na amálgama para evaporar o mercúrio, o que é bastante tóxico.
Defendemos que o uso do pau-de-balsa seria uma proposta de 'redução de danos' dentro de um processo de transição muito maior que precisa ser implementado. A ideia é começar um 'desmame' com os pequenos garimpeiros e levar conscientização e alternativas rentáveis com gestão ambiental para que as famílias garimpeiras - ou algumas delas - migrem de atividade a médio e longo prazo.
A proposta inclui o cadastro de balsas, educação ambiental nas escolas, oficinas dentro do conceito de Produção Agroecológica Integrada e Sustentável (PAIS), a criação de animais, viveiros de frutos, hortaliças e mudas de pau-de-balsa.
Tudo para que entendam que a floresta e seu modo de vida valem mais, já que o dinheiro do garimpo é uma ilusão.
Ecoa: Por quê uma ilusão?
Marta: Um garimpeiro chega a ganhar cerca de R$ 5 mil em uma semana na balsa [Marta estima que o grama do ouro seja vendido por pouco mais de R$ 200].
Então ele vai para cidade com o dinheiro do garimpo, se acha rico, se deslumbra, compra roupa, relógio, tecnologia... Mas envenena o peixe consumido pela própria família, se contamina aspirando o mercúrio, desenvolve problemas motores por aguentar dias e dias de barulho da batela na cabeça, fica exposto à violência...
Conheço gente que trabalha há 40 anos no garimpo e vive na miséria. Portanto, o lucro do garimpo, além de criminoso, é ilusório. Sem contar que o grande montante vai para as grandes mineradoras. As novas gerações precisam se dar conta disso.
Ecoa: E por que te acusam de incentivar o garimpo?
Marta: Porque acham que eu estou apresentando a planta como a solução para a garimpagem: usou a planta, pode continuar. Mas não é assim.
Por outro lado, é preciso encarar: o garimpo não vai acabar! Estudo essa prática há pelo menos uma década e trabalho com profissionais que dedicaram a vida tentando solucionar esse problema, mas é uma guerra perdida.
Já comprovamos que a forma de combate utilizado na Amazônia - queima das balsas e repressão policial - não funciona, porque o garimpo está enraizado na cultura dessas pessoas, muitas não têm ideia dos prejuízos causados e sempre dão um jeito de voltar à atividade.
A planta pau-de-balsa resolveria o problema do garimpo?
Nunca, jamais, porque o mercúrio não é o único vilão do garimpo, que envolve muitos outros fatores irreversivelmente nocivos, como o desmatamento, a dragagem — que assoreia os rios, suga espécies, impede a navegação —, a desova de tartarugas e procriação dos animais - além de problemas sociais: a prostituição, a violência, as doenças levadas por garimpeiros de outas regiões, a exploração de pessoas, entre tantos outros.
Quando o substrato da planta estaria pronto para ser utilizado publicamente?
Já fizemos alguns testes em laboratório, em breve começaremos uma segunda etapa, a dos testes em campo. A ideia é que tenha patente livre, justamente para que, num futuro próximo, essa tecnologia possa ser usada em miniusinas, onde os próprios comunitários possam produzi-la. Creio que até o meio do ano finalizaremos o estudo.
Mas repito: tudo será acompanhado com ações paralelas de conscientização. Já temos parceria com o prefeito de Manicoré (Lúcio Flávio do Rosário) e o Secretário de Meio Ambiente do Amazonas (Eduardo Taveira), grandes interessados em reverter a situação do garimpo ilegal na região.
E como vai funcionar a produção das mudas de pau-de-balsa?
A ideia é que as comunidades façam o manejo da planta e que gerem renda com a venda da madeira e, mais adiante, a implementação e treinamento em miniusinas para a produção do extrato em pó, que poderá ser vendido pelas associações das comunidades aos pequenos garimpeiros que insistirem em manter a atividade, mas que a partir de então, será feita em pequena escala, de forma artesanal e regulamentada. Com mais valor agregado, claro.
Ecoa: Não é utópico acreditar que as famílias garimpeiras vão aderir a essa proposta, menos rentável ao que têm hoje?
Marta: Não será rápido nem fácil, mas precisamos começar. A educação muda tudo, eu acredito muito nas novas gerações. E no investimento, claro.
Nossa perspectiva está na conscientização e no investimento, para que não desanimem em continuar numa atividade "menos rentável" a curto prazo, mas que vai garantir a subsistência saudável de suas famílias e das próximas gerações.
Garimpeiros morrem mais cedo, eles serão sempre perseguidos e agora mais do que nunca, o assunto está em pauta.
O mercúrio causa câncer, atinge o sistema nervoso central, causa déficit de aprendizado, problemas pulmonares, intestinais, má formação no feto... Que riqueza é essa?
Ecoa: Em quanto tempo acredita que será possível medir os resultados?
Marta: Acredito que em dois anos possamos fazer um balanço. Já teremos pelo menos 50 viveiros com diferentes tipos de hortaliças, pessoas treinadas e capacitadas nas diversas frentes, multiplicação da proposta em outros municípios do interior. Se tivermos ajuda do capital privado, poderemos ir ainda mais longe e mais rápido.
Ecoa: Entre tantos desafios, qual é o mais difícil?
Marta: Manter os jovens estimulados. O jovem amazônico está inserido num contexto de muita riqueza: de frutos, de água, de peixes. As comunidades são fartas, tudo se planta ali para consumo próprio.
Mas é difícil enxergar a riqueza quando se tem abundância, especialmente quando existe uma massa tecnológica fazendo as cabeças desses jovens para o consumo, para a não valorização da floresta e da biodiversidade onde vivem.
Mas só eles e elas poderão promover essa transformação a longo prazo, e, quem sabe, mudar a cultura que temos hoje no garimpo.
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