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'Mau cheiro, insetos e crianças doentes': comunidades lutam por água limpa

A quilombola, defensora popular e conselheira de direitos humanos Maria Lúcia de Oliveira Sousa - Arquivo Pessoal
A quilombola, defensora popular e conselheira de direitos humanos Maria Lúcia de Oliveira Sousa Imagem: Arquivo Pessoal

Lucas Veloso

Colaboração para Ecoa, em São Paulo (SP)

15/06/2023 04h00

O cágado-de-barbicha é uma espécie nativa da América do Sul, geralmente encontrado nas águas do estado do Piauí, nordeste brasileiro, onde vive e se reproduz em riachos, florestas alagadas, lagos com bastante vegetação, pequenos córregos, lagoas, açudes e grandes rios com correnteza.

Uma das funções naturais da espécie é fazer a limpeza das águas, mas na comunidade Boa Esperança, em Teresina, onde moram ribeirinhos e quilombolas, a consequência da poluição é a morte desses animais, pois eles acabam se contaminando pelos dejetos jogados nas lagoas da região.

"Mortos, deixam de desempenhar seu papel na cadeia alimentar e no ecossistema, entende?", diz a quilombola, defensora popular e conselheira de direitos humanos Maria Lúcia de Oliveira Sousa, que vive na região e trabalha com ações em prol de melhores condições ambientais no nordeste brasileiro. Diariamente, ela ouve moradores vítimas da contaminação das águas.

Outra consequência negativa na região é que, nos últimos anos, cada vez menos se come o que é plantado na beira dos rios e suas vazantes. A contaminação do lixo e a poluição impedem o consumo saudável do cultivo local.

2 - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Os moradores de Boa Esperança buscam apoio de universidades e organizações da sociedade civil em prol de políticas públicas mais eficientes para conter os danos ambientais que sentem na pele.
Imagem: Arquivo pessoal

A região onde fica Boa Esperança é conhecida por suas lagoas e rios. Segundo os moradores, um dos principais desafios enfrentados ali é que, desde a chegada do 'progresso' e do capital internacional, não houve uma conexão e diálogo com a comunidade. "As lagoas foram separadas e canalizadas. Agora, os esgotos vão diretamente para lá, um exemplo de puro racismo ambiental", aponta Maria.

Quando chove, essas lagoas transbordam e o mau cheiro dos esgotos se espalha, contaminando todas as águas e matando os animais. Além disso, as pessoas adoecem devido aos insetos, aos maus odores e a todo o lixo e resíduos que são jogados nelas. Maria Lúcia de Oliveira Sousa

Na quebrada

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Erley é fundador da organização Águas Resilientes, que busca desenvolver soluções criativas, inovadoras e tecnológicas para resolver os inúmeros desafios relacionados à oferta de água de qualidade para as pessoas
Imagem: Arquivo Pessoal

Erleyvaldo Bispo dos Santos, mais conhecido por Erley, é natural de Lagarto, agreste sergipano, onde se formou como técnico em agropecuária, mas hoje é morador de Seropédica, Baixada Fluminense no Rio de Janeiro, onde cursa Engenharia Florestal.

O jovem também é o fundador da organização Águas Resilientes, que busca desenvolver soluções criativas, inovadoras e tecnológicas para resolver os inúmeros desafios relacionados à oferta de água de qualidade para as pessoas, sobretudo nas periferias brasileiras.

"Ao falar sobre água no Brasil não tem como não fazer um recorte social. As pessoas nos bairros ricos sentem muito pouco o impacto da questão do saneamento, pois geralmente nessas áreas há infraestrutura e saneamento adequados", diz Erley.

Ao adentrarmos em regiões periféricas e interiores, observamos que a situação é bem diferente. Nessas áreas, não há saneamento e infraestrutura adequados. Isso está completamente ligado à qualidade de vida das pessoas. Erley, fundador da organização Águas Resilientes

Para ele, uma boa análise é observar que a maioria das pessoas afetadas são negras, indígenas, quilombolas e ribeirinhas, o que também se liga à questão do racismo ambiental, pois quem mora em áreas privilegiadas tem acesso à água, saneamento e higiene.

Em sua experiência, o ativista diz que é frequente, por exemplo, a situação de crianças contraírem doenças transmitidas por águas contaminadas, o que leva a internações hospitalares.

Menos saneamento, mais internações

Estudos feitos por especialistas confirmam o cenário. No Brasil, a falta de saneamento básico sobrecarregou o sistema de saúde com 273.403 internações por doenças de veiculação hídrica em 2019, um aumento de 30 mil hospitalizações na comparação com o ano anterior, além de 2.734 mortes. Os dados são do estudo Saneamento e Doenças de Veiculação Hídrica - ano base 2019, do Instituto Trata Brasil.

Ainda de acordo com o monitoramento 'Pobreza na infância e na adolescência", da UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância), 14,3% das crianças e dos adolescentes não têm o direito à água garantido. As privações do recurso variam de acordo com a região, sendo predominantes no Norte, no Nordeste e na zona rural do país.

"Atualmente, no Brasil, temos centenas de milhares de internações anuais por doenças de veiculação hídrica, sendo que a maioria delas é de crianças de zero a cinco anos de idade", diz Erley. "E, no caso das mães solos nas favelas e periferias, quando um filho contrai uma doença transmitida pela água, essa mãe precisa deixar de trabalhar para levá-lo ao hospital".

Nascida como resposta à emergência e à necessidade de promover soluções relacionadas à agenda de água e saneamento, o projeto Águas Resilientes colocou como prioridade as pessoas que vivem em situação de vulnerabilidade, como aquelas que residem em regiões semiáridas e favelas no Brasil.

Entre os projetos em andamento da Águas Resilientes, está o Águas Mil, um sistema de captação da chuva 100% reciclável. A ideia é proporcionar às pessoas acesso à água potável para uso culinário e consumo. Nesse sentido, a iniciativa está em processo de implementação em uma comunidade no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, em parceria com a organização Voz das Comunidades.

Urgência hídrica entre os indígenas

Secretário Executivo da Organização Baniwa e Koripako NADZOERI, o indígena Juvêncio Cardoso também acompanha de perto a urgência da água nas comunidades tradicionais. Hoje, o principal desafio nessas comunidades é a ausência de políticas de saneamento. "Até 2010, por exemplo, apenas uma comunidade na região da Bacia do Rio Içana, com cerca de 27 mil quilômetros quadrados e 80 aldeias com aproximadamente 6 mil pessoas, possuía estrutura de abastecimento de água.

1 - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Juvêncio Cardoso, secretário Executivo da Organização Baniwa e Koripako NADZOERI
Imagem: Arquivo pessoal

Segundo ele, o desafio se repete em todas as outras comunidades. Um aspecto preocupante é o destino do esgoto nas aldeias, já que muitas vezes as pessoas fazem suas necessidades fisiológicas ao redor da aldeia, o que resulta no acúmulo de resíduos orgânicos nos igarapés e, posteriormente, nos rios, principalmente durante as chuvas.

Além disso, há o desafio relacionado ao descarte do lixo nas aldeias indígenas. Com o acesso aos centros urbanos, as comunidades passaram a usar produtos industrializados, como enlatados e outros materiais domésticos, como pilhas e baterias. Quando esses resíduos são descartados, muitas vezes acabam próximos às casas e ao redor da comunidade. Durante os períodos chuvosos, esses materiais são levados pela água para as fontes, igarapés e rios e agrava ainda mais a situação.

Segundo Juvêncio, um levantamento interno, feito em 2017, em mais de 600 comunidades indicou que 46% da população declarou obter água diretamente dos rios para consumo, seguido por 25% que utilizam água da chuva, captada dos telhados, principalmente aqueles feitos de alumínio, embora haja outros componentes envolvidos. Além disso, 22% declararam obter água de fontes superficiais, como igarapés e nascentes, enquanto 4% utilizam água de poços e 2% de poços artesianos.

Para ele, a realidade presente no território evidencia a necessidade constante de abordar essa questão, uma vez que o acesso à água potável é um direito fundamental. "Como liderança indígena, representando os povos do território da Bacia do Rio Içana, temos buscado colocar essa pauta em nossas assembleias e implementar projetos para enfrentar esse desafio".

Mais pessoas na discussão

Entre as soluções para mudar o cenário das águas contaminadas no Brasil e a ausência do saneamento básico está o protagonismo popular nos espaços de decisão, mas segundo Estela Alves, pesquisadora do Instituto de Energia e Ambiente da USP, a participação da sociedade civil nas discussões sobre saneamento tem sido limitada, principalmente devido à percepção de que se trata de um assunto técnico, afastando as pessoas por se sentirem incapazes de contribuir com opiniões. "Se toda a sociedade fosse mobilizada em prol desse tema, não seria necessário possuir conhecimentos técnicos avançados. Basta ter a consciência de que é desejável que o seu bairro e todos os bairros da cidade tenham coleta de esgoto", diz Estela

Temos visto que, quando essas comunidades se organizam e acionam o Ministério Público ou a justiça em busca de soluções, a água e o esgoto são coletados, mesmo por meio de projetos pontuais e precários. Estela Alves, pesquisadora do Instituto de Energia e Ambiente da USP

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