Criador de safári africano no Brasil, caçador milionário morreu arrependido
Nos anos 80, existiu um safári diferenciado em Dourados, em Mato Grosso do Sul. O local tinha espécies da África e da Ásia, em vez de animais típicos, ali, do Pantanal. Mas não era uma vida livre. Na verdade, os bichos eram usados como presas para serem mortos por caçadores esportivos. O safári de caça foi fechado, mas deixou um mistério. Onde foram parar os animais que sobreviveram?
O criador do safári se chamava Trajano Silva. Na década de 60, ele fundou uma empresa de leilão de gado no Rio Grande do Sul. Nos anos 80, após se aposentar do ramo, ele inaugurou o safári chamado Varjão, onde convidou caçadores para visitar uma pequena "África sul-matogrossense".
Trajano se inspirou nas suas aventuras de caça em países como Botswana, Quênia e Sudão, onde atirava em leões, hipopótamos e antílopes. Um dos grandes sonhos dele era ver o filho seguir os seus passos. "Vou transformá-lo no maior caçador do mundo", disse em entrevista a um jornal em 1988. O leiloeiro morreu em 2016, aos 86 anos.
Lucros animais
O empresário passou a cobrar para caçadores passarem o dia na Varjão, onde antílopes e cervos eram abatidos. Para ele, era um baita negócio. Além de cobrar pela hospedagem e pela caça, ele podia reproduzir e vender os animais exóticos do safári. O abate de um antílope custava 2 mil dólares nos anos 90.
Além disso, criava jacarés com autorização do Ibama e servia a carne em almoços. Um jornal da época descrevia o safári como o local onde parecia ter "atracado a Arca de Noé"
Na década de 80, Trajano e caçadores brasileiros se promoviam como ambientalistas. Seguindo uma lógica própria, diziam respeitar regras rígidas, como caçar em áreas fechadas com critérios técnicos, diferentemente dos praticantes ilegais que trabalhavam para o tráfico de animais. Havia esperança na regulamentação da caça no Brasil, como aconteceu em estados dos Estados Unidos.
Um abajur de zebra
Para defender a tese sobre a ética ideal de um caçador, Trajano dizia ter desistido de caçar um leão de juba preta após o animal sair da área reservada de caça, na África. Também afirmava não atirar em aves no chão - "é covardia" - e jamais à noite, quando alguns animais estão mais desprevenidos. "O caçador entra no terreno do animal armado, mas, se for verdadeiro, não abusa dessa vantagem", defendia.
Trajano tinha tapetes com peles de leões, búfalos, zebras e de hienas, segundo um jornal da época. Nas paredes, cabeças empalhadas de hipopótamos da Tanzânia, Sudão e Egito. As pernas de uma zebra eram usadas como suporte de abajur e um rabo de gnu virou espanador.
Para compor o Safári Varjão, ele comprou mais de 60 antílopes waterbucks, da África, e mais cervos-russa, do sudoeste asiático. "Os animais se adaptaram bem. O clima e a vegetação da região são semelhantes aos da África", defendeu um funcionário dele à época.
A informação era mais ou menos verídica. "Os animais eram de uma terra seca da África. Aqui, chovia. Dava verme e não dava para dar vermífugo. Meu pai precisou encontrar algumas técnicas para criar", diz Vadico Silva, um dos seis filhos de Trajano para Ecoa.
O pai de Vadico não importou os bichos diretamente das savanas. "Meu pai não trouxe os animais da África. Ele comprou em zoológicos de São Paulo, Rio de Janeiro, de Porto Alegre, de Curitiba, de Belo Horizonte", explicou o herdeiro.
Estava na lei
Mas criar um safári africano no Brasil, onde animais eram abatidos por esporte, não era ilegal? Bom, existiam brechas na lei que permitiam um empreendimento desse tipo. A caça foi parcialmente liberada em propriedades privadas durante o regime militar até o início da redemocratização brasileira.
Quando a Varjão foi inaugurada, em 1986, a prática da caça amadora era permitida com base em uma lei de 1967. O mesmo texto proibia a caça de animais silvestres, mas não falava sobre animais exóticos, que são aqueles vindos de faunas estrangeiras. Na prática, era possível caçar por lazer no país em locais fechados - até mesmo aves.
Nos anos 2000, as mudanças na lei tornaram o Safári Varjão impraticável. O dono, então, decidiu abri-lo para visitação de famílias e fotógrafos e para a venda de animais exóticos. "Os ecologistas pensam que proibir protege, e não é assim", insistia Trajano, no começo do milênio.
A prática da caça continuou na Varjão até os anos 90. Além dos antílopes e cervos, capivaras foram acrescentadas ao pacote. Naquela altura, porém, o futuro do negócio era incerto. "São abatidos apenas os animais velhos e com defeitos, escolhidos por mim", disse Trajano para uma publicação em 1994.
Com a idade mais avançada, Trajano começou a se despedir dos animais que, mais uma vez, foram parar em cantos de um país ao qual nunca pertenceram. O leiloeiro ficou à frente das negociações e, por esse motivo, os filhos também desconheciam o destino daqueles bichos tão diferentes.
Segundo Vadico, uma parte foi enviada para o zoológico de Goiânia, mas a informação era imprecisa. "Não tenho boas notícias: não veio nenhum desses animais para cá", rebateu Raphael Cupertino, diretor do zoológico de Goiânia, por telefone.
Para matar a charada, Ecoa viajou de São Paulo até Dourados (1 mil km de distância) em busca do que havia sobrado do Safári Varjão. Lá, encontrou o herdeiro e filho de Trajano, que não quis gravar entrevista sobre o pai.
De acordo com um dos funcionários, as onças comeram alguns bichos que sobreviveram ao fim do safári. Outro grupo de animais teria sido abatido por ordem do Ibama, a fim de evitar competição com espécies nativas.
Além disso, outros animais também teriam sido vendidos para Noel Gonçalves, administrador da Fazenda Serra Azul, em Quirinópolis, a 3h30 de Goiânia. Lá, há, de fato, waterbucks à venda. No entanto, por telefone, Noel hesitou ao confirmar a transação. "A gente pode ter tido um animal que tenha vindo dele, sim, com certeza", disse. O mistério dos animais ou dos filhotes continua em aberto.
O safári hoje em dia
Na Varjão, ainda há a placa da época do safári, mas enferrujada. Hoje, são cerca de 2 mil hectares de plantações de soja. Chovia muito quando a reportagem chegou ao local, e a colheita feita por máquinas precisou ser adiada mais uma vez. Em vez dos campos verdes de soja, os brotos pareciam ressecados, e o herdeiro de Trajano, preocupado.
Em Itahum, distrito de Dourados há cerca de 1 hora de distância da região urbanizada, vive um homem que conheceu Trajano e o Safári Varjão no auge. "Eu era o cônsul deles", se autodenomina Otto, dono de um posto de gasolina. Ele levava os turistas para caçar e, na juventude, também caçava.
"No fim, ele [Trajano] se arrependeu de ter sido caçador", diz Otto. Assim, a sala com troféus de caça deixou ser aberta aos visitantes, lembra Otto, com 84 anos. "A gente só cria juízo depois de velho".
Apesar da existência de projetos de lei em Brasília para permiti-la, a caça não foi regulamentada no Brasil. Ao contrário, tornou-se mal vista devido à crueldade, ao risco de levar espécies à extinção e foi proibida até para os exóticos (a única exceção é a caça do javaporco, considerado invasor pelo Ibama).
Os filhos de Trajano não se tornaram caçadores e o mercado da soja resultou na diminuição dos campos e das matas que eram habitats dos animais nativos — e até daqueles exóticos comprados por Trajano.
Reportagem Marcos Candido | Edição de texto Fred Di Giacomo
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