'Deus é negra': ela ajudava mulheres em situação de prostituição em SP
O Dia das Mães é motivo de festa e comemoração entre as famílias. Filhos viajam de longe para passar o segundo domingo de maio com as mães, e dias antes da data os presentes são motivo de preocupação. Além disso, histórias familiares emocionantes aparecem em todos os cantos, mas o ar de comemoração não chega às mulheres, em sua maioria negra, que vivem em situação de prostituição na região da Luz, bairro central de São Paulo.
Preocupada e comprometida com uma vida digna para essas mães que vivem nas ruas, Cleone dos Santos foi a responsável por promover todo ano uma festa para lembrar a importância delas.
Mulher negra de pele escura. O cabelo às vezes estava trançado, outras com o crespo solto ou de turbante. As roupas também variavam entre estampas coloridas e tons neutros.
Apesar das mudanças visuais, uma coisa que nunca mudou foi a disposição constante de Cleone, que durou até o último 11 de maio com sua morte, aos 65 anos.
As Mulheres da Luz
Mãe de dois filhos e avó de dois netos, Cleone dos Santos nasceu em Juiz de Fora, Minas Gerais. Chegou a São Paulo com a mãe e foi morar em Diadema, cidade na Grande São Paulo. Mais nova, trabalhava no bairro Bom Retiro, na limpeza de duas lojas, e também gostava de ler jornal.
Certa vez, enquanto estava sentada e lendo no parque, um homem se aproximou e perguntou se ela fazia programas. Ela disse que não, mas o interessado voltou outras vezes com a mesma pergunta insistente, até que um dia ela cedeu. Depois percebeu que o valor era cerca de cinco vezes o que ganhava no trabalho. Cleone ficou como prostituta no parque da Luz por 18 anos.
Deixou o serviço para fundar, em parceria com a freira Regina Célia Corad, a ONG Mulheres da Luz, grupo de auxílio às mulheres que vivem da prostituição.
Desde 2013, a organização atende mulheres que, em sua grande maioria, são negras e pardas, com mais de 40 anos, moradoras de regiões periféricas da cidade, sendo que a maioria é analfabeta e vivem com até 1,5 salário mínimo. Informações da própria ONG dão conta que, mensalmente, são cerca de 500 atendimentos.
Pelo seu trabalho, em março de 2019, não só ficou conhecida como "defensora das prostitutas" por quem a cercava, como ganhou o prêmio Heleieth Saffioti, que homenageia mulheres e entidades que combatem a discriminação social, sexual e racial, na Câmara Municipal de São Paulo.
Prostituição: a escravidão mais antiga
Amiga de Cleone há mais de 15 anos, Cinthia Abreu faz parte da Marcha Mundial de Mulheres e também da Marcha das Mulheres Negras de São Paulo, onde também compartilhavam parcerias.
Para ela, uma das maiores contribuições de Cleone foi estabelecer que prostituição não é trabalho, já que não existe uma relação de patrão e empregado.
"A prostituição para as mulheres pretas, não alfabetizadas, as mais prejudicadas não é uma opção, mas uma uma condição", destaca. "Uma vez a perguntaram se a prostituição era a profissão mais antiga do mundo. Ela respondeu que era a escravidão mais antiga".
Cinthia também comenta que o modo de ver também impactou em organizações importantes, a exemplo da CUT (Central Única dos Trabalhadores), que passou a desconsiderar as mulheres em situação de prostituição como trabalhadoras já que não existe uma negociação entre elas e quem as controla, como os cafetões. "Ela bancou o debate e trouxe acolhimento e visibilidade. Uma intelectual feminista às mulheres negras".
Professora da rede estadual, integrante da Frente Regional de Enfrentamento à Violência contra as mulheres da região metropolitana de São Paulo, Vanda Nunes Santana também foi outra figura que esteve próxima e acompanhou ações de Cleone, sobretudo nos últimos meses quando ocupou a cadeira de coordenadora de Políticas Públicas para Mulheres de Diadema.
As duas se conheceram "na luta", como costumam se referir a ações e eventos promovidos por movimentos sociais, como a Pastoral da Mulher Marginalizada. Vanda ressalta que tudo que Cleone pensava estava relacionada com as mulheres em situação de prostituição. "Ela pensava no dinheiro que precisavam para os preservativos, na saúde bucal delas. Chegava a dividir cigarros", cita.
'Deus é uma mulher negra'
Em um depoimento dado à Prefeitura de Diadema, onde trabalhava, Cleone chegou a dizer que a força e a determinação vieram da mãe. "Dona Bernadete. Ela não sabia o que era feminismo e não se interessava pelo trabalho dos movimentos sociais", disse. "Ao mesmo tempo, ela ajudava toda a vizinhança lá do Jardim ABC das mais variadas formas e até hoje é lembrada lá no bairro".
As duas amigas que falaram com Ecoa também citaram a coragem e a ousadia de Cleone, que, em um país marcado pelo racismo, dedicou a vida para pautar mulheres marginalizadas nas ruas das grandes cidades.
A professora Vanda lembra que o legado de Cleone fica como a lembrança da frase que ouviu pela primeira vez da boca da própria Cleone: "Eu conheci Deus. Ela é uma mulher negra".
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