Morta com as netas em acidente da TAM, professora deixou legado inesperado
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Encontrei o nome "Elizabete Caballero" em um jornal antigo e me surpreendi com a descoberta. Na década de 80, Elizabete fundou um grupo ecológico em São José do Rio Preto, cidade localizada a 443 km da capital paulista. Havia poucas organizações desse tipo na época, ainda mais lideradas por uma mulher no interior de São Paulo. Quis conhecê-la, mas não a encontrei. O que poderia ter acontecido com ela?
Elizabete era professora do departamento de história natural da Unesp, a Universidade Estadual Paulista. Formada no Rio Grande do Sul, ela chegou em 1962 à universidade para defender uma tese de doutorado sobre anelídeos. Ou seja, minhocas. Era a única a estudá-las na cidade de São José do Rio Preto
Seu trabalho era cavar e examinar as minhocas no laboratório. Uma tarefa pesada. Bete tinha a ajuda de pescadores e "minhoqueiros" para encontrá-las. "As minhocas comem a terra (...) Elas arejam e adubam o solo, aumentam a drenagem. É um tratorzinho trabalhando", explicou Bete para um jornal em 1970. A fama cresceu e ela passou a responder dúvidas de leitores nos jornais.
A Sociedade Regional da Ecologia foi fundada por Bete para plantar árvores, defender a biodiversidade e lutar pelo meio ambiente na região. O maior objetivo da sociedade era a limpeza do Rio Preto, que dá nome à cidade. À época, o rio recebia esgoto e arriscava a vida dos animais e até da água na torneira dos moradores.
Nessa altura, o grupo já fazia barulho. Graças a eles, a prefeitura voltou atrás no desmatamento de 50% de uma área de vegetação nativa, em 1983. "A mata será laboratório permanente, inclusive de sementes de árvores nativas", disse em entrevista na época. Faltava, porém, o rio.
"Era uma pessoa amável, gentil, educada", diz o professor da Unesp Arif Cais, aluno de Bete no final dos anos 60. Segundo ele, Bete cativou engenheiros, médicos, professores e advogados para a sociedade.
Era uma mulher elegante, bonita, mas de trabalho no campo e de trabalho pela cidade, Arif Cais.
Bete e Alejandro
Quando era estudante universitária, Bete organizou uma manifestação contra um professor com pouca paciência para explicar uma matéria. Foi mandada para a direção, onde conheceu um coordenador mais velho, um espanhol chamado Alejandro Caballero. Ela foi advertida, voltou para casa e começou a perceber que estava apaixonada pelo homem que havia conhecido.
Bete e Alejandro casaram e tiveram dois filhos: Alexandre e Carmem. A filha a acompanhava à universidade, o que, para uma criança, parecia uma aventura na selva. Os laboratórios tinham serpentes, ratos, insetos, animais empalhados. "Eu achava aquilo muito fascinante", lembra Carmem.
Nos anos 1990, Alexandre teve um filho. Em 1992, Carmem também deu à luz Júlia, a primeira neta de Bete. A família sentia a chegada de uma nova geração sem imaginar uma reviravolta. Em maio de 1993, Alexandre morreu em um acidente de trânsito em São Paulo, quando voltava de um trabalho, como advogado.
O pai, Alejandro, havia fugido da Espanha, durante a Guerra Civil Espanhola e se imaginava capaz de resistir a momentos difíceis, mas nada o preparou para a morte de um filho aos 27 anos de idade. "Foi um trincado muito grande na família", lembra Carmem.
Em 1996, Carmem engravidou novamente e deu à luz Maria Isabel, a segunda neta da professora Bete. A família sentia ter renascido com a bebê. A avó ajudava a cuidar das netas. "Ela sempre dizia para as amigas que a melhor coisa que aconteceu na vida dela foram as netas", diz Carmem. Em 2003, também nasceu Lilian, a mais nova das três filhas de Carmem.
Os almoços da família Caballero voltaram a ter música, risadas, crianças correndo por entre as pernas dos adultos. Nos anos 2000, as irmãs já adolescentes ouviam Shakira, Red Hot Chili Peppers, Avril Lavigne no iPod e aguardavam novos livros e filmes de Harry Potter. Todo ano, viajava de férias com a avó para o Rio Grande do Sul.
Voo TAM 3054
Em 2007, a professora Bete decidiu realizar o sonho de Júlia, a mais velha, de passear em Gramado. Na viagem, a avó também levou Maria Isabel, a neta do meio. Com pouco mais de três anos, Lilian, a mais nova, ficou em São José do Rio Preto com Carmem.
Todos os dias, a mãe telefonava para saber como estava o passeio das duas filhas com a avó. "Quando me tornei mãe, foi um propósito que coloquei: que todos os dias lembraria as minhas filhas do quanto eram amadas", diz.
Falei: ó, mamãe vai tá esperando vocês no aeroporto aqui. Carmem Caballero
Na volta para casa, Bete, Júlia e Maria Isabel saíram de Gramado (RS) até Porto Alegre (RS), onde embarcaram em um avião até Congonhas, em São Paulo, para fazer uma escala até São José do Rio Preto, a mais de 400 km da capital.
Enquanto embarcavam, Carmem assistia despreocupadamente aos jogos Panamericanos no Rio de Janeiro, em casa. O telefone tocou. Do outro lado da linha, estava o pai, Alejandro. "Você viu o avião que caiu?", perguntou. "Será que é o mesmo delas?"
Carmem mudou de canal. Por instinto, conferiu se o número do voo era o mesmo da família. Não era. Apesar disso, o noticiário ainda era caótico. As primeiras notícias falavam sobre a explosão de um posto de gasolina, mas logo o avião foi avistado entre as chamas. No meio da confusão, um número errado do voo foi veiculado pela imprensa. A informação trouxe mais tranquilidade.
"Até que a repórter falou: 'Preciso fazer uma correção: o número do avião é o JJ3054'", diz.
O 3054 pousou em Congonhas, mas não desacelerou. Segundo as investigações, uma das alavancas ficou na posição de aceleração. A aeronave, então, perdeu o controle, saiu da pista, sobrevoou a avenida Washington Luiz e bateu contra o prédio da TAM e em parte de um posto de gasolina. Entre a autorização para o pouso e a colisão, se passaram poucos segundos.
Os 187 passageiros a bordo (e mais doze pessoas em solo) morreram, em um total de 199 mortes. Entre as vítimas, estavam advogados, empresários, aviadores, tripulantes e famílias inteiras em férias — e também Bete, a avó com as duas netas. "Eu soube pela televisão. E só consegui gritar e cair", diz Carmem.
Nas semanas seguintes, os Caballero tentaram resolver burocracias e se esforçaram para dar entrevista para os jornais. "Eu tinha ido assistir ao novo filme do Harry Potter, que elas adoravam. Para não estragar a surpresa, porque elas iam ver assim chegassem, não contei muitos detalhes", disse Carmem para a Folha de S. Paulo.
O luto transformou Carmem em uma pessoa apegada à organização e aos objetos. Mais de quinze anos depois, ela guarda numa caixinha o material encontrado pela perícia no local do acidente. Nela, há notas de dinheiro intactas, uma carteira e um colar que Bete, sempre elegante, usava. Das filhas, uma pulseira e o iPod em perfeito estado. "Quando recebi, foi muito difícil", diz.
Após mais de dez anos de um jogo de empurra, ninguém foi condenado pelo acidente. A companhia aérea, hoje chamada Latam, e a fabricante da aeronave, Airbus, fecharam acordos para compensar parte dos familiares.
No início de 2022, o Ministério da Infraestrutura inaugurou uma rampa para aumentar a pista de Congonhas e ampliar uma área de frenagem, o que, em tese, também poderia ter permitido o voo arremeter e evitar o choque contra o prédio, embora a velocidade a direção do 3054 impedissem esse tipo de manobra. A extensão também ajuda a desacelerar aeronaves, assegurou a pasta. Em 2012, a prefeitura inaugurou um memorial onde ficava o prédio da TAM, hoje chamada de Praça Memorial 17 de Julho.
"Esse é um dia que marcou não apenas a instituição [a Unesp] e minha amizade com Bete. Marcou toda a cidade, que se comoveu", lembra Arif, o ex-aluno e professor do mesmo departamento.
A sociedade ecológica de Bete saiu vitoriosa: o esgoto de 90% da cidade é tratado e o Rio Preto é lar para pássaros, anfíbios, peixes e mamíferos. Bete também lutou pelo tombamento do teatro que viria a chamar Paulo Moura, em frente ao rio, que seria demolido para a construção de prédios. Antigamente, o local era uma antiga fábrica de óleo de amendoim. Hoje, moradores saem do teatro e descansam no calmo rio que atravessa a cidade e segue pelo interior paulista.
Infelizmente, a Bete não viu a limpeza do rio Preto. Mas a semente dela está aqui e a semente germinou. Arif.
Para ir à universidade, ele dirige um fusca que passa na frente da escola Maria Elizabete Caballero, uma homenagem feita pela prefeitura. "Passo aqui muitas vezes por semana e sempre me lembro da professora Elizabete", diz.
Carmem vive com a Lilian, que tem 19 anos e cumpre os ritos da idade: acabou de arrumar um estágio em uma empresa de tecnologia em São José do Rio Preto. A saudade continua, se transforma, aperta.
Nossa casa sempre tinha piadas, brincadeiras e novidades. É o lado bom. Graças a Deus, tivemos esse período, esse tempo de vida junto para ter essas memórias. É isso que dá um fôlego para continuar: se você foi feliz, sabe disso e tem essas memórias. Carmem Caballero.
Reportagem Marcos Candido | Edição Fred Di Giacomo |
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