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No coração de Madri, 'Dragões' usam futebol para ensinar sobre antirracismo

Atletas refugiados são maioria no time de adultos da Dragones de Lavapiés - Divulgação
Atletas refugiados são maioria no time de adultos da Dragones de Lavapiés Imagem: Divulgação

Natália de Oliveira Ramos

Colaboração para Ecoa, em Madri (Espanha)

29/06/2023 06h00

Apesar de aparecer nas listas de lugares imperdíveis para o turista visitar em Madri, Lavapiés, bairro no centro da capital espanhola, nunca deixou de ser marginalizado. Além do desemprego, a falta de segurança é um dos principais problemas do local, onde crianças e idosos estão expostos a roubos com violência e ao tráfico de drogas.

Em meio a esses contrastes, em 2014 um terreno público de 700 metros quadrados na rua Embajadores, número 18, se tornou a primeira das três quadras do clube Dragones de Lavapiés, um clube de futebol que existe para promover a diversidade e combater o racismo. Atualmente, são mais de 20 times de futebol formados por 400 jogadores de 50 nacionalidades.

O magnetismo que faz do futebol o esporte mais popular da Terra foi a aposta de Dolores Galindo e Jorge Bolaños para transmitir valores antirracistas entre crianças de origens tão diversas. "Elas não precisam ser convencidas a jogar bola. Elas apenas querem!", diz Dolores, cofundadora e presidente do clube.

Entre as virtudes que propaga o futebol, comenta a presidente, estão companheirismo, empatia e senso de comunidade, além da diversão aliada a uma atividade saudável que nem sempre foi acessível para as crianças de Lavapiés.

1 - Natália de Oliveira Ramos/UOL - Natália de Oliveira Ramos/UOL
Presidente do Dragones de Lavapiés mostra foto da primeira partida de futebol feminino organizada pelo clube/ Imagem: Natália de Oliveira Ramos
Imagem: Natália de Oliveira Ramos/UOL

Galindo relembra que no início as crianças jogavam na lama e em meio à escuridão. Sem dinheiro, tentaram improvisar com lâmpadas. Depois de dois anos, conseguiram que a prefeitura instalasse os refletores e que o time de futebol Atlético de Madrid colocasse o gramado.

Além de exemplo de inclusão social para os clubes e torcidas a nível internacional, os Dragones representam uma rede de apoio para a comunidade. Durante a pandemia da covid-19, por exemplo, o clube mobilizou doações financeiras e de alimentos e bens de primeira necessidade.

Galindo estima que diariamente, mais de 60 famílias receberam os donativos. Além disso, a taxa de 10 euros mensais (cerca de 55 reais na conversão da época) só foi paga pelos alunos que podiam arcar com o valor.

Crianças seguram faixa com a frase: "A bola de futebol não tem gênero" - Divulgação - Divulgação
Crianças seguram faixa com a frase: "A bola de futebol não tem gênero"
Imagem: Divulgação

Lavapiés é um bairro historicamente habitado por imigrantes - quase 90 nacionalidades convivem ali - a maioria de origem africana, como marroquinos e senegaleses. Por suas ruas estreitas e inclinadas, quitandas de Bangladesh e barbearias equatorianas se misturam a cafés modernos, grafites e hipsters de esquerda falando em castelhano.

O time adulto e masculino é praticamente todo formado por pessoas refugiadas ou indocumentadas. São pessoas que fugiram de países em guerra ou situações de pobreza e chegaram à Espanha cruzando o Mar Mediterrâneo em botes infláveis. Apesar da série de ataques racistas que sofreram em campo, foram campeões da liga em que participaram no ano passado.

Além do esporte, o Dragones de Lavapiés oferece aulas gratuitas de inglês para crianças e adultos. As marroquinas dão aulas de árabe, alguns recebem aulas de wolof, idioma falado por seis milhões de senegaleses. O objetivo é que as primeiras gerações de espanhóis de ascendência estrangeira aprendam o idioma de seus pais e se orgulhem de sua cultura. "Isso também é antirracismo", explica a presidente do clube.

O trabalho do clube foi reconhecido pela iniciativa "Futebol pela Inclusão de Refugiados na Europa" (Fire, pela sigla em inglês), financiada pela União Europeia. Apesar da premiação em dinheiro ajudar a tocar o projeto em Lavapiés, a presidente do Dragones lamenta: "Nos destacamos na Europa, mas não conseguimos colaboração do poder público dentro do nosso próprio país".

Mães de Dragões

As mães das crianças também estabeleceram relações que foram além das conversas na hora de buscar seus filhos. Há quase cinco anos, as brasileiras Tania dos Santos, de 44 anos, e Michelle Rosa, 46, são uma das "Dragonas" - o time feminino, talvez o mais diverso, no qual muçulmanas e integrantes da comunidade queer dividem a quadra.

Por volta das 20 horas de uma quinta-feira, a garoa fina interrompia a trégua que a chuva tinha dado numa semana chuvosa em Madri, quando o time de meninas adolescentes acabava de treinar e mulheres adultas entravam em campo.

Jogadora com a camisa do time feminino do Dragones de Lavapiés - Divulgação - Divulgação
Jogadora com a camisa do time feminino do Dragones de Lavapiés
Imagem: Divulgação

"É o meu melhor momento do dia", conta Rosa, que é mãe solo de dois meninos, de 13 e 8 anos, e trabalha como boleira.

"Pouco antes do horário do meu treino, já deixo o jantar pronto para os meus filhos, o mais velho fica de olho no mais novo e eu venho correndo. É minha hora de relaxar e desconectar dos problemas", diz a brasileira.

Amiga de Rosa, Tania dos Santos concorda com a compatriota quanto à qualidade de vida que adquiriu com a prática do esporte e enfatiza que o mundo do futebol é, de modo geral, pouco receptivo com mulheres.

Os dados colaboram com Tania. Segundo um estudo da instituição Mulheres no Futebol, a cada três jogadoras ou mulheres que participam da indústria à nivel mundial sofreram discriminação em algum momento de suas carreiras.

O diretor esportivo do Dragones Fra San Pietro aponta que há mais solidariedade entre os times de futebol feminino, no qual não há ofensas de cunho racista e tampouco xenofóbico. Talvez, ele reflete, porque não haja questões relacionadas à masculinidade tóxica, como demonstração de força física.

Tanto Rosa quanto dos Santos são moradoras de Lavapiés e acompanham há anos seus filhos nos treinos. Ambas afirmam que a participação dos meninos em um ambiente inclusivo e acolhedor reflete no comportamento deles fora das quadras.

O caso de racismo contra o jogador brasileiro Vinicius Junior deixou os meninos "estarrecidos", por exemplo. Ver o atacante do Real Madrid chorar ao ser chamado de macaco pela torcida adversária foi motivo de conversa em casa. Dos Santos, por exemplo, conta que o filho de 12 anos teve dificuldade para entender o comportamento racista. "Foi como se estivessem xingando algum amigo dele, alguém próximo", relembra a mãe.

Rosa complementa: "[Lavapiés] é um bairro abandonado, maltratado. Mas no Dragones a gente sente que faz parte de algo maior".

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