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Para ter um CEP, moradores fazem vaquinha e asfaltam a própria rua em SP

Moradores asfaltam rua em favela da zona sul de SP. - Flavia Santos / UOL
Moradores asfaltam rua em favela da zona sul de SP. Imagem: Flavia Santos / UOL

Flávia Santos e Ronaldo Matos, do Desenrola e Não me Enrola

Colaboração para o UOL, de São Paulo (SP)

29/06/2023 04h00

Ao longo de mais de duas décadas, o pedreiro Reinaldo Torquato, 34, presenciou como a falta de asfalto na principal via de acesso na Favela da Muriçoca, na zona sul de São Paulo, dificultava a vida dos moradores para chegar em qualquer destino, dos pontos de ônibus às escolas e comércios; e até mesmo o acesso a benefícios e serviços públicos, uma vez que a região não dispõe de CEP (Código de Endereçamento Postal).

Visando solucionar este problema, o pedreiro criou em parceria com moradores do território, a Associação de Amigos - Rua das Crianças, que neste mês se prepara para realizar o terceiro mutirão para asfaltar a principal rua do local, onde moram 70 famílias. A ação tem sido possível depois de uma vaquinha comunitária, que arrecadou até agora cerca de R$ 6 mil.

"Passagem de carro aqui só acontece porque a gente joga entulho, barro ou terra. Para ir ao ponto de ônibus mais próximo precisamos passar por vielas, um campo de futebol sem iluminação e com esgoto. Em época de chuva a gente precisa colocar sacola no pé, pra não chegar no ponto todo sujo", descreve o pedreiro.

Cidadania postal

A ausência de CEP prejudica não só o recebimento de correspondências, mas o cadastramento de cidadãos em órgãos governamentais, como a Receita Federal, o Incra e o INSS, impactando o acesso a direitos sociais. Antes do mutirão, por exemplo, o transporte escolar e dos Correios (para entrega de produtos do programa Leve Leite) não entravam na favela.

"Eu sou uma pessoa obesa. Imagina como era difícil levar meu filho na escola. Eu vivia caindo e me machucando nos buracos, não tinha como pegar a perua porque elas não entram na rua", conta a auxiliar de serviços gerais, Graziela Santos, 38, que se mudou da favela após 6 anos. "Precisei sair da minha casa própria e ir para o aluguel. Esse processo foi muito difícil".

Moradores asfaltam rua em favela da zona sul de SP. - Flavia Santos / UOL - Flavia Santos / UOL
Moradores asfaltam rua em favela da zona sul de SP.
Imagem: Flavia Santos / UOL

Carolina Freitas, pesquisadora da USP e do Centro de Estudos Periféricos da Unifesp, também aponta como a ausência de código postal gera um problema econômico, que se reflete em efeitos cíclicos de vulnerabilidade social.

"O desemprego estrutural na cidade está associado às pessoas que não conseguem comprovar onde moram, pois isso é um dos primeiros requisitos para concorrer a qualquer vaga de trabalho", comenta.

A Favela da Muriçoca está localizada no distrito do Jardim Ângela, onde 60% da população é negra, segundo o Censo 2012. No país, está é a parcela da população com os maiores índices de desemprego.

O poder público municipal

Contra a falta de CEP, uma modalidade de endereçamento postal, uma espécie de "CEP digital" também está sendo criada pela Google, em parceria com a ONG Gerando Falcões e a startup de logística naPorta. Anunciada nesta segunda (27), o objetivo é ampliar a ferramenta Plus Codes em mais de 20 favelas brasileiras mapeando 10 mil endereços sem CEP até o fim de 2023. A iniciativa, no entanto, servirá apenas para fins logísticos.

O CEP regulamentado pelo poder público é de responsabilidade dos Correios, que cria o código postal a partir de ruas regularizadas pela Prefeitura de São Paulo. Como boa parte das favelas, a Muriçoca - uma das 1.747 favelas da cidade, segundo dados da Sehab (Secretaria Municipal de Habitação) - não tem o território regularizado.

Garantir o asfalto na rua é uma forma de pressionar o Executivo neste sentido, uma vez que ela está localizada em uma área com função social de regulação fundiária, como explica a advogada especializada em moradia Juliana Avanci. "Essa área tá gravada no zoneamento como uma Zona Especial de Interesse Social (ZEIS 1) - ou seja, é destinada para regulação fundiária e permanência dos moradores".

A Muriçoca está sob jurisdição da Subprefeitura de M'Boi Mirim, que neste ano teve uma redução de R$ 19 milhões no orçamento para serviços públicos, na comparação com o ano passado. Ao Desenrola, a subprefeitura informou que a Muriçoca se trata de uma área de manancial ocupada irregularmente desde 1996 e que a administração regional realiza periodicamente serviços no local, como correção de irregularidades nas ruas.

Já a Secretaria Executiva do Programa Mananciais explicou que existe um projeto de urbanização em execução no perímetro em que a favela está localizada, que envolve obras em redes de água e esgoto, bem como construção de viário e vielas, escadarias e calçadas. "As obras de urbanização do bairro iniciaram em agosto de 2022 e tem previsão de finalização para junho de 2024", pontua em nota.

"A gente cansou de ir na prefeitura, cansou de tanta promessa. Então, por isso, a gente resolveu fazer tudo sozinho. Já vieram representantes de deputados locais aqui fazer perguntas, propor reuniões, mas estamos calejados, eles sabem o que acontece aqui, mas nunca fizeram nada"
Reinaldo Torquato, 34

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