Topo

Após um século, 150 famílias 'reaparecem' no país: 'História trágica'

vandawitoto.com.br
Imagem: vandawitoto.com.br

Caroline Apple

Colaboração para Ecoa, em São Paulo (SP)

03/07/2023 05h00

"Não foi um milagre religioso, foi conhecimento ancestral", disse a indígena Vanda Witoto a respeito do resgate das quatro crianças que passaram 40 dias desaparecidas na selva colombiana após sobreviverem a um acidente de avião.

As vítimas teriam sido encontradas pela Guarda Indígena, após a equipe de resgate, composta por nativos e militares, inserir nas buscas algumas práticas ancestrais do povo Witoto, como o uso da ayahuasca e do Chimú, rezas e outras encantarias, aliadas às tecnologias do exército.

Em contraponto à notoriedade que os Witoto ganharam com a repercussão deste caso, esse povo carrega uma extensa e silenciosa história de luta por sobrevivência no Brasil. E uma das representantes desta batalha é a ativista e profissional da saúde Vanda, que vive na pele as consequências desse silenciamento fruto da colonização.

Nosso povo vive uma espiritualidade ancestral, que foi violada e negada durante todo esse processo [de colonização]. Substituíram todo o modo de vida do nosso povo e como ele dialoga com o seu sagrado. É uma história muito trágica de violência, expulsão de território e genocídio. Vanda Witoto.

Borracha e genocídio

A ativista destaca a época da exploração da borracha, na região do rio Putumayo (um dos mais importantes afluentes do rio Amazonas), local de origem de seus bisavós, onde, segundo ela, houve um grande genocídio no início do século passado, obrigando os Witoto e outros povos a migrarem. Alguns foram para o Peru e outros desceram o rio Amazonas para o Solimões, no Brasil, entre eles, seus ancestrais.

Vanda nasceu na região do Alto Solimões, no município de Amaturá, no Amazonas, na tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia, anos após essa migração forçada de seu povo. É lá que fica a aldeia Colônia, nome fruto da colonização, que os Witoto lutam para mudar. E foi nesse local que a ativista morou por 16 anos.

Eu nunca tinha saído da aldeia até meu pai me colocar em um barco para Manaus, em 2002. Ele me disse que eu era um pássaro e não precisava viver presa no meu território. Vanda Witoto

Ela conta que na cidade foi trabalhar como empregada doméstica, ganhando R$ 100 por mês. "Foi o período que passei as maiores violências da minha vida."

Renascimento como indígena

Vanda Witoto - vandawitoto.com.br - vandawitoto.com.br
Imagem: vandawitoto.com.br

Em 2009, Vanda conseguiu um emprego numa loja de tortas em Manaus. E foi neste estabelecimento que a ativista trabalhou por sete anos ganhando um salário-mínimo. "Lá eu tive a oportunidade de ter formação para liderança, estar à frente de uma equipe. Isso ajudou muito no meu desenvolvimento."

Mesmo trabalhando, o dinheiro era curto e não dava para Vanda visitar a família na aldeia, nem mesmo quando sua avó, Tereza Vargas, uma grande liderança do seu povo, faleceu. E, por ironia, foi longe do seu povo que a ativista teve a oportunidade de saber sua identidade.

Uma pessoa me perguntou se eu era indígena. Eu respondi que eu era uma mulher Witoto, porque disso eu sempre tive noção, mas eu não sabia o que isso significava para a história do meu povo. E foi então que essa pessoa contou que indígenas tinham direitos, como o de ir para a universidade. Vanda Witoto

Vanda então prestou o vestibular e descobriu que tinha que comprovar que era indígena por meio do Rani (Registro Administrativo de Nascimento de Indígena), que é emitido pela Funai assim que uma criança indígena nasce. "Esse documento nunca fez sentido para nós, por isso eu não levei para Manaus. Minha mãe tinha o documento guardado. Quando eu recebi o Rani, a minha história mudou."

Derekine de Saúva

Foi de posse desse documento que Vanda descobriu seu nome indígena aos 27 anos. "Eu não sabia que tinha um. Meu nome indígena é Derekine, que significa que eu pertencia ao clã de Saúva. Nosso povo é dividido assim para parente não se casar com parente", explica.

Vanda Witoto - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Saber todas as aquelas informações somente naquela altura da vida deixou Vanda revoltada e cheia de dúvidas, fazendo com que ela descobrisse o "pacto" de silêncio pela sobrevivência que seu povo firmou.

"Perguntei para o meu pai porque nunca nos contaram aquelas coisas. Por que eu tinha um nome indígena? Por que eu tinha um clã? Eu não estava entendendo nada. E meu pai ficou muito receoso, porque os nossos mais velhos não falavam sobre a nossa cultura."

Queriam que a gente apagasse toda a nossa história por causa da violência a que tinham sido submetidos. E, para não corrermos os mesmos riscos, fomos silenciados. Queriam nos proteger. Vanda Witoto

Um povo sem maloca

Uma das coisas que o povo Witoto conseguiu preservar nesses 100 anos foram seus hábitos alimentares, considerados fundamentais para a sua conexão espiritual e ancestral.

Porém, o mesmo não se pode dizer de um dos maiores símbolos da cultura Witoto: a folha de coca, que faz parte da tríplice de elementos importantes da composição de pensamento desse povo, juntamente com o tabaco e a macaxeira doce.

Vanda Witoto - vandawitoto.com.br - vandawitoto.com.br
Os witoto são proibidos de cultivar a folha de coca no Brasil
Imagem: vandawitoto.com.br

O cultivo da folha de coca no Brasil é proibido, o que afasta os Witoto de sua principal medicina. "Não se pensa como Witoto se não tem o espírito do tabaco e da coca na boca. Nosso povo no Brasil não mambeia. Não poder mambear a coca é uma grande violência contra a gente", afirma.

A ativista explica que o ato de mambear é realizado exclusivamente por homens, por simbolizar o corpo da mulher. Por ser a representação do feminino, os homens mascam a planta com o objetivo de enviar proteção ao corpo da mulher.

O mambeio se dá antes de conversas, pronunciamentos e encontros dentro de um espaço específico na maloca, construção que o povo Witoto do Brasil não tem.

"Não ter uma maloca é uma das grandes dores da nossa vida. E foi visitando meus parentes na Colômbia que descobri o motivo de nunca termos conseguido construir uma mesmo em meio a tantas tentativas."

Os mais velhos disseram que a espiritualidade nunca nos deixaria construir uma maloca sem ter uma roça de coca.Vanda Witoto

Reencontro ancestral

Vanda faz uma analogia com a história das crianças Witoto perdidas na selva colombiana com a das crianças Witoto do Brasil, afirmando que, enquanto o grupo passou 40 dias perdido na floresta, as crianças indígenas do seu povo no Brasil estavam perdidas há um século.

O reencontro se deu através da fama que a ativista conquistou após ser a primeira amazonense a ser vacinada contra a covid-19 e ter sido uma das grandes protagonistas na luta em prol à saúde dos povos nativos do estado durante a pandemia. Ela fez do Parque das Tribos, a comunidade onde mora com parentes indígenas, uma unidade de atendimento e, do seu carro pessoal, uma ambulância.

Vanda Witoto - vandawitoto.com.br - vandawitoto.com.br
Na pandemia, Vanda Witoto transformou a comunidade onde mora em uma unidade de atendimento
Imagem: vandawitoto.com.br

"Os parentes da Colômbia sempre mambearam por nós e buscaram por sobreviventes. Foi na pandemia, quando eu fui vacinada, que o nosso povo se reencontrou. Então, nós fomos para a Colômbia e, diante dos nossos relatos sobre as violências que sofremos aqui, o nosso povo fez uma carta para começarmos o processo de propor, enquanto lei, uma reparação desses danos a partir de uma legislação para que meu povo possa plantar coca em seu território", diz.

Hoje, estima-se que o povo Witoto esteja em torno de 150 famílias distribuídas em 3 aldeias no Brasil.

O 'grande pássaro'

A indígena colocou seu povo no mapa e agora vive esse processo de luta por retomada e valorização da cultura Witoto em solo nacional, além de batalhar pela regeneração e preservação do meio ambiente, participando de eventos e convenções, como a Cúpula da Amazônia, e tecendo diálogos com diversos setores da sociedade.

Em 2022, Vanda foi candidata a deputada federal no Amazonas pela Rede Sustentabilidade, mas não foi eleita.

O sonho do pai de Vanda foi bem além do que ele previa para a filha, que era terminar o Ensino Médio e ir para o "distrito" para trabalhar. Mas uma coisa ele acertou em cheio: a ativista voou alto. "Sou o grande pássaro do meu pai."

*

Um fazendeiro excêntrico cria um safári africano no Brasil. Uma cidade famosa por seus... caixões. Em 'OESTE', nova série em vídeos do UOL, você descobre estas e outras histórias inacreditáveis do interior do país. Assista:

Siga Ecoa nas redes sociais e conheça mais histórias que inspiram e transformam o mundo

https://www.instagram.com/ecoa_uol/

https://twitter.com/ecoa_uol