'Capital do caixão' vive corrida inesperada: hora da morte está mudando
Cabrália Paulista é uma cidade no interior de São Paulo conhecida como a capital nacional do caixão. Ou, no termo técnico, a capital das urnas funerárias. Nos últimos anos, as fábricas desse tranquilo município se viram diante de um conflito peculiar: existe algum jeito mais ecológico de morrer?
Com a crescente preocupação ambiental, os clientes passaram a exigir a redução de lixo durante o enterro ou a cremação. O motivo é a quantidade de recursos usados para esse momento: um caixão comum precisa de madeira extraída de vários tipos de árvores, de alças metálicas, tinta, vidro, tecido para forrar o espaço e até um pequeno travesseiro para a cabeça.
O novo pedido dos clientes chacoalhou Cabrália. Em materiais de divulgação, as fábricas começaram a se vender como conscientes em relação ao meio ambiente e ao uso de madeira com uma origem responsável. Foi uma tática para manter a liderança, já que o mercado funerário mundial está ávido por inovações sustentáveis.
Nos Estados Unidos, a startup Decompose criou uma cápsula para umidificar e transformar o corpo em adubo dentro de 30 dias. Por lá, também foi inventado o Green Burial, ou "enterro verde", no qual o corpo é colocado diretamente no solo, ou em um caixão biodegradável e o cemitério torna-se um parque.
Cemitérios, candelabros, velórios e até a vegetação em torno dos jazigos têm sido revistos para se tornarem mais sustentáveis. No Chile, um cemitério implementou colmeias para promover a polinização das flores, impôs metas de reciclagem e instalou placas solares. No Rio Grande do Sul, um cemitério tradicional anunciou o reúso da água da chuva para regar os jardins fúnebres.
Uma alça reciclável
Na tranquila Cabrália, lar de 4.300 almas, o funileiro aposentado Ronaldo Macieira percebeu o rumo que o mercado tomava. De olho nas fabricantes, ele desenvolveu uma alça de alumínio removível para caixão. O objeto é preso pelo coveiro nas laterais e, em vez de ir junto com o corpo para a cremação ou enterro, pode ser retirado, reutilizado em outro caixão ou ser reciclado e transformado em outra peça.
Eu desenvolvi essa alça até pensando nos fabricantes: eles colocam 317 [caixões], dependendo da carreta. Sem a alça, cabem de 30 a 40 [caixões] a mais.
Ronaldo Macieira.
Ronaldo chegou a Cabrália há mais de 20 anos para realizar trabalhos para a indústria de urnas funerárias. Hoje, ele parece ressentido em relação aos rumos tomados pela cidade e o país em relação ao meio ambiente.
Ronaldo mora na frente de uma das fábricas de caixão, para onde se mudou há mais de vinte anos. A casa onde vive, uma rua sem asfalto, lembra um oásis. O terreno tem árvores frutíferas e passarinhos cujo canto só é interrompido pelo ruído dos caminhões e tratores.
Eucaliptos e pinus rodeiam Cabrália. Seus troncos abastecem a indústria madeireira do país e também são usados para a fabricação das urnas funerárias. Segundo ambientalistas, o monocultivo do eucalipto é nocivo ao meio ambiente. Além de estrangeiras, as árvores são plantadas em áreas que ocupam o espaço que antes era da agricultura, fauna e vegetação nativas.
Ninguém quer plantar mais [alimentos]. Então, o que fazer? Arrenda a terra para plantar eucalipto. Daqui a pouco, vamos ter que fazer um cursinho de lagarta para aprender a comer folha de eucalipto.
Ronaldo Macieira.
"A sustentabilidade funerária envolve mudanças drásticas em culturas religiosas sobre como devem ser feitos rituais obrigatórios na hora da morte, mas, agora, a sociedade está mudando. A religiosidade tem caído no mundo e a preocupação com o planeta está aumentando", diz Gisela Adissi, fundadora da Flow Death Care, uma consultoria do ramo funerário.
A consultora afirma ser acionada por empresas de planos funerários, cemitérios particulares, crematórios, fabricantes de urnas e adereços fúnebres interessados em serem mais sustentáveis em um mercado acirrado que está no meio de uma questão ambiental de grandes proporções.
8 bilhões de habitantes um dia serão 8 bilhões de mortos
Vivemos em um planeta com 8 bilhões de pessoas, de acordo com a estimativa da ONU. No entanto, estudos indicam que até o ano de 2080, a população mundial poderá atingir a marca de 10 bilhões. Esse aumento populacional traz implicações positivas e negativas para o futuro.
Os seres humanos estão vivendo e se reproduzindo mais graças ao avanço da ciência, mas também consumindo recursos da natureza que poderão se tornar escassos no futuro. Além disso, quando houver mais gente no planeta, mais gente vai morrer. No futuro, será necessário mais matéria-prima e recursos para continuar a produzir os caixões dentro dos moldes atuais.
Em Cabrália, a vereadora Maria Aparecida Zanon propôs a ampliação do cemitério da cidade devido ao aumento populacional, um reflexo das tendências futuras. "Vão abrir vários lugares", diz. Segundo ela, a ideia é ampliar o serviço de reciclagem municipal para diminuir o lixo produzido durante o velório.
Uma solução nada ambiental
Para lidar com o problema da matéria-prima, o ramo funerário já testou soluções ineficazes para melhorar o meio ambiente.
O funileiro Benedito Molina, 70, mora na Avenida da Saudade, em Cabrália, e produz caixões lacrados dentro da própria garagem. Em suas memórias de menino que cresceu no meio da indústria funerária, ele se recorda do projeto de um caixão de plástico. "Mas não foi aprovado, porque não 'derrete'. Fica 500 anos na 'terra' e não absorve", diz.
Segundo a consultora Gisela, a madeira ainda é o método mais sustentável para enterros. "No Brasil, as urnas quase nunca usam verniz - o que poderia lançar químicos na terra - e depois de três anos pouco sobra da urna", diz.
Segundo ela, o reúso da madeira não é uma prática comum por aqui e a opção de crematórios é limitada. Por outro lado, a cremação gera emissões de gases como O2, CO2, SO2, também prejudiciais para a atmosfera, um tipo de poluição diferente daquela produzida pelo sepultamento tradicional, que é líquida. A conclusão é de um estudo de uma associação de abastecimento hídrico.
Nos Estados Unidos, onde o embalsamamento de corpos e caixões de ferro é prática comum, a consultora Gisela destaca preocupações ambientais mais significativas. Lá, a preservação do corpo lança produtos químicos no solo e a urna metálica não se decompõe. Por motivos ambientais, famílias norte-americanas topam até reutilizar caixões usados. "De acordo com alguns cálculos, os americanos enterram uma ponte Golden Gate de ferro por ano", diz.
Falar sobre a morte, em si, continua sendo um desafio, apesar de todas as inovações e preocupações de escala global. Seu Benedito Molina, por exemplo, perdeu a esposa em 2022. Os dois estavam casados havia quase 50 anos. Ele se emociona ao lembrar dela.
Todos os dias, seu Molina levanta a cabeça e vai almoçar com a filha e os netos, que também vivem na pequena Cabrália Paulista. "Lidar com a vida não é fácil. Mas a gente tem que tocar", conclui.
| Reportagem Marcos Candido | Edição Fred Di Giacomo |
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