Negra e lésbica: saiba quem foi a primeira repórter do Brasil e de Portugal
Natália Eiras
Colaboração a Ecoa, de Lisboa (Portugal)
18/07/2023 06h00
A primeira repórter de que se tem notícia que atuou no Brasil - e também em Portugal - foi uma mulher nascida em 1882 que era negra e lésbica. Apesar de, na época em que viveu, outras mulheres terem escrito artigos para jornais antes dela, foi Virgínia Quaresma a primeira a trabalhar nas redações como redatora e repórter, saindo a campo para entrevistar políticos e investigar assassinatos.
Virgínia nasceu na cidade de Elvas, na região do Alentejo, em Portugal, no dia 28 de dezembro de 1882, filha de Júlio César Ferreira Quaresma e Ana da Conceição. Por suas fotografias, percebe-se que era uma mulher negra, provavelmente pela família materna, mas há um apagamento dos registros dessa linhagem da jornalista.
A cor da pele pode ter sido decisiva para isso. Ela cresceu em uma família de militares e, por isso, teve acesso a uma boa educação. Na adolescência, praticava com a amiga Olga Morais Sarmento poesia, filosofia e inglês, para desgosto de sua tutora. Tanto que foi uma das primeiras mulheres a se formar em letras em Portugal.
As informações são dos professores e pesquisadores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Andreia Castro e Eduardo da Cruz, autores do artigo "'O primeiro 'repórter' feminino do Rio de Janeiro': Virgínia Quaresma no Brasil", de julho de 2021.
"Virgínia se aproveitava do preconceito em relação às mulheres para conseguir informações, muitas delas em primeira mão, de homens poderosos que pensavam que tinham com apenas uma conversa ingênua", relatam os pesquisadores em entrevista a Ecoa.
Começou na imprensa feminina
Sua carreira jornalística começou na imprensa feminina. "Provavelmente na revista feminina 'Sociedade Futura', criada em 1902, por Ana de Castro Osório", dizem os professores.
Em 1907, foi secretária de redação na revista 'Alma Feminina', mas logo foi citada como redatora principal. Até que, em 1912, decidiu se mudar para o Brasil. Sem qualquer emprego em vista, conseguiu uma colocação no jornal 'A Época', lançado no mesmo ano.
"Sua contratação mereceu uma fotografia dela trabalhando nos escritórios da redação, na primeira página, indicando uma marca de modernidade", contam os pesquisadores. "Virgínia Quaresma não só dividia o espaço no escritório da redação, mas - ainda mais revolucionário para a época - andava pela cidade atrás de fontes e entrevistas. Isso era novidade no jornalismo e quase impensável para as mulheres."
Pioneirismo e feminismo
É por conta dessa atuação que ela é considerada a primeira repórter mulher de Portugal e do Brasil. "Seu modo de contar histórias, indo ao lugar em que os fatos ocorriam, se aproximava da empregada pelo escritor João do Rio. Algo que era incomum até para os homens repórteres do fim do século 19 e do início do século 20", explicam Andreia e Eduardo.
Virgínia foi pessoalmente entrevistar políticos como Rui Barbosa, Nilo Peçanha e o general Pinheiro Machado, visitou presos na cadeia, acompanhou trabalhadores em greves e, como repórter investigativa, criou subterfúgios para obter informações.
A jornalista era, também, abertamente feminista. Cobrava por justiça em casos em que mulheres eram assassinadas por conta de seu gênero (tipificado como feminicídio atualmente), fazia questão de entrevistar e ampliar vozes femininas e de advogar ativamente para que mais mulheres pudessem ter espaço no mercado de trabalho.
Relacionamentos com mulheres
Na vida pessoal, Virgínia nunca escondeu seus relacionamentos com outras mulheres. "É conhecida a relação dela com a poetisa divorciada Maria da Cunha, com quem veio para o Rio de Janeiro em 1912", dizem os pesquisadores. Ela também morou com a jornalista Maria Luiza Vallat da Silva Passos, com quem ficou por 30 anos, até a morte da Maria, em 1964.
Para conquistar seu espaço em um "mundo de homens", Virgínia Quaresma jogava o jogo masculino: vestia-se como os companheiros e reproduzia os mesmos papéis dos casais da época.
Ela ocupava-se da vida pública, do espaço público, de sua profissão, da rua. Já Maria Luiza estava reservada para a esfera privada, a vida doméstica, o cuidado com a roupa, a dedicação com o cônjuge.
Andreia Castro e Eduardo da Cruz, professores da UERJ
História apagada
Virgínia, no entanto, é pouco lembrada na história do jornalismo. Uma das razões, segundo os pesquisadores, é o fato de que, na época em que atuou, não era comum que os repórteres, tanto homens como mulheres, assinassem seus textos.
Por isso é difícil encontrar quais são as reportagens feitas pela portuguesa. E apesar de seu pioneirismo na reportagem, a jornalista seguiu outras carreiras na comunicação: dirigiu uma agência de notícias em Portugal e, mais tarde, criou um escritório de relações públicas.
O posicionamento político de Virgínia nos anos 1950, quando António Salazar instaurou uma ditadura em Portugal, também contribuiu para que sua história fosse apagada. "Ela defendeu a posição e os interesses de instituições conservadoras, nacionalistas e bastante afinadas com o Estado Novo português, como adida de imprensa da Companhia Colonial de Navegação (CCN) no Brasil", explicam os pesquisadores.
Após a morte de sua companheira Maria Luiza, Virgínia voltou para Portugal, onde morreu em 1973, aos 91 anos.
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