Topo

Saberes tradicionais x conhecimento científico: existe ciência indígena?

Cristiane Julião, do povo pankararu - Arquivo pessoal
Cristiane Julião, do povo pankararu Imagem: Arquivo pessoal

Carlos Minuano

Colaboração para Ecoa, em São Paulo (SP)

24/07/2023 04h00

Há muito tempo cientistas de todas as partes do mundo se embrenham nos lugares mais distantes da selva amazônica atrás do conhecimento de velhos xamãs e pajés. A contribuição dos saberes tradicionais para o desenvolvimento de produtos e medicamentos é inegável. Então, por que quando se fala em "ciência indigena" no meio acadêmico, muitos pesquisadores torcem o nariz e afirmam que isso não existe?

Psiquiatria ancestral

No emergente campo da ciência psicodélica, que bebe na fonte do xamanismo, o debate passa pela beberagem amazônica ayahuasca. Mesmo sem os métodos científicos ortodoxos, os indígenas desenvolveram há milhares de anos uma mistura complexa de plantas com efeitos poderosos, que há décadas é estudada por cientistas, além de ter sido incorporada a grupos religiosos como o Santo Daime e UDV (União do Vegetal).

Um detalhe engenhoso da bebida intriga os pesquisadores. A ayahuasca é preparada a partir da mistura de duas plantas: as folhas de um arbusto, que contém DMT (dimetiltriptamina, uma droga alucinógena), e de um cipó, que é o responsável pela "mágica" do chá. Sem ele, a beberagem não teria nenhum tipo de efeito psicoativo.

Isso porque o organismo tem enzimas que destroem a DMT antes dela chegar no sistema nervoso central. Na ayahuasca, a harmina (presente no cipó), é responsável por inibir essa enzima e preservar a integridade da DMT. Desta forma, permite ao composto psicodélico alcançar a corrente sanguínea e depois, no cérebro, ativar os receptores de serotonina, desencadeando lá o seu efeito.

Ciência indígena - Natalia Plankina/Getty Images/iStockphoto - Natalia Plankina/Getty Images/iStockphoto
A ayahuasca é preparada a partir da mistura de duas plantas: as folhas de um arbusto e um cipó
Imagem: Natalia Plankina/Getty Images/iStockphoto

Para além de seu valor simbólico, cultural e religioso, a ayahuasca, há décadas, é estudada para fins terapêuticos. Evidências apontam que a bebida pode trazer benefícios para quadros graves de depressão e de dependência química. Para outra ala de cientistas, a expansão dos estudos científicos em torno da bebida ayahuasca é uma amostra exemplar de que a ciência indígena existe.

As ciências indígenas são sistemas de conhecimento empírico e sistemático, desenvolvidos por povos originários e frequentemente apropriados pela ciência acadêmico-universitária.

Sidarta Ribeiro, neurocientista

Saber indígena abarca mundo invisível

Existem várias ciências indígenas, segundo Cristiane Julião, do povo pankararu, integrante do CGen (Conselho de Gestão do Patrimônio Genético), órgão vinculado ao Ministério do Meio Ambiente. "Cada forma de conexão e manuseio desses saberes é uma ciência."

Um primeiro obstáculo entre os conhecimentos indígenas e a ciência ocidental é que a explicação dos saberes tradicionais abarca um mundo invisível. "A ciência indígena é o conhecimento apreendido por meio da conexão astral sobre a natureza", afirma a indígena.

Segundo ela, esse conhecimento é adquirido ao longo da vida de cada indígena, sobretudo daqueles que possuem o dom de ouvir e falar com os espíritos. "Os cientistas dos povos originários são os xamãs, pajés e curandeiros", explica.

Estas pessoas são como médiuns, são nossas referências na transmissão de mensagens, ensinamentos que formam os saberes e dos povos indígenas.

Cristiane Julião, indígena do povo pankararu

Meios diferentes de buscar conhecimento

3 - Reprodução - Reprodução
Ilustração do livro 'Plantas Mestras - Tabaco e Ayahuasca', do antropólogo Jeremy Narby
Imagem: Reprodução

"Prefiro falar de conhecimento indígena a falar de ciência", diz Jeremy Narby, antropólogo canadense radicado na Suíça, que viveu durante anos na Amazônia peruana.

Em seu livro mais recente, "Plantas Mestras - Tabaco e Ayahuasca" (editora Dantes), ele busca pontos de concordância entre saberes tradicionais e científicos.

Para ele, a questão se enrosca na definição da palavra 'ciência'. "Sua etimologia sugere 'conhecimento', mas a palavra passou a significar o que pessoas com formação acadêmica fazem seguindo metodologias específicas", observa.

Para completar sua resposta, ele cita o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, cientista social que colaborou para derrubar a ideia de que os povos originários seriam marcados por atraso em relação ao mundo ocidental.

"A ciência objetiva o mundo para conhecê-lo, enquanto os indígenas personificam o mundo para fazer o mesmo. Ambos buscam conhecimento, mas seus meios de obtê-lo são diferentes."

Narby argumenta que os povos indígenas, há muito, dizem que os humanos têm parentesco com outras espécies. Segundo ele, a ciência agora confirma isso.

"Da mesma forma, eles há muito sustentam que as espécies vivas têm inteligência, e a ciência passou a reconhecer isso, mesmo no que diz respeito a plantas". Para o pesquisador, em questões fundamentais, a ciência parece estar tentando recuperar o atraso.

Conhecimento autônomo

Ciência indígena - Reprodução - Reprodução
Ilustração do livro 'Plantas Mestras - Tabaco e Ayahuasca', do antropólogo Jeremy Narby
Imagem: Reprodução

Os saberes tradicionais dos povos originários representam um corpo de conhecimento autônomo, segundo a bióloga Nurit Bensusan, pesquisadora do ISA (Instituto Socioambiental). Mas, para ela, é claro que existe ciência indígena, com outra lógica, outros pressupostos.

A pesquisadora observa que a ciência indígena não é feita do mesmo jeito que a ocidental, e por isso defende que a comparação seja injusta. "Essa ideia de que a ciência precisa validar o conhecimento tradicional não faz o menor sentido, porque estamos lidando com um corpo autônomo de conhecimento."

Diálogos entre mundos

Em seu livro "Do que é feito o encontro", de 2019 (Instituto de Educação do Brasil/ISA), Nurit Bensusan apresenta três argumentos para mostrar como esses conhecimentos são úteis e não um sistema subalterno à ciência.

  • Inovação em novas abordagens e perguntas

"Os conhecimentos dos povos originários são gerados por meio de paradigmas e práticas que são distintas da nossa ciência. Podem se converter em fontes de inovação para nossa forma de fazer ciência. Aconteceu, por exemplo, quando as mulheres chegaram na ciência e trouxeram uma outra forma de fazer pesquisa. O conhecimento dos povos indígenas também pode ter esse papel de trazer novas possibilidades."

  • Indígenas nos ensinarão a viver melhor em um mundo pior

"Os saberes tradicionais indígenas e de outras comunidades locais são reflexos de outros modos de viver, diferentes dos nossos, e nos mostram outras possibilidades, agem como se fosse uma janela para fora dessa hegemonia totalizante da nossa forma de viver, ou seja, não é à toa que, por exemplo, o Eduardo Viveiro de Castro disse em certa ocasião: "Será que não são os indígenas que irão nos ensinar a viver melhor em um mundo pior?"

  • Eficiência no convívio com a natureza e outros seres

"A eficiência desse conhecimento em relação aos processos da natureza, no convívio com os outros seres com os quais dividimos esse planeta é muito maior do que a da nossa ciência. Não conseguimos sequer ver esse conhecimento. Então, é claro, a gente tem um enorme cabedal do que a gente poderia chamar de ciência indígena e que eu preferia chamar de um conhecimento de povos indígenas e comunidades locais."

(*Os textos dos tópicos acima não são trechos literais extraídos do livro citado, mas sim a fala da autora Nurit Bensusan destacando pontos abordados na obra, em entrevista a Ecoa).

*

Um fazendeiro excêntrico cria um safári africano, uma cidade famosa por seus caixões? Em "OESTE", nova série em vídeos do UOL, você descobre estas e outras histórias inacreditáveis que transformam o centro-oeste brasileiro. Assista:

Siga Ecoa nas redes sociais e conheça mais histórias que inspiram e transformam o mundo
https://www.instagram.com/ecoa_uol/
https://twitter.com/ecoa_uol