Policiais LGBT+ desafiam preconceito em Madri: 'Polícia também tem orgulho'
Em 2016, na cidade de Madri, na Espanha, um policial pensou em denunciar o namorado por violência doméstica, mas não se atreveu por medo de que seus companheiros descobrissem sua orientação sexual.
A hostilidade dentro das corporações de segurança do país com gays, lésbicas, bissexuais e transexuais, que afastou o agente de prosseguir com a denúncia, é resumida em uma estátistica: naquele ano, a cada dois dias aconteceu uma agressão lgbtfóbica na capital espanhola, mas apenas 21 denúncias chegaram às delegacias.
Ter que lidar com deboche e desprezo nesse nível deixa marcas. Doenças psiquiátricas, afastamentos e abandono de carreira são algumas delas. Para um grupo de policiais LGBT+ da cidade espanhola estava claro que era necessário uma mudança na forma de atuar da polícia, e, para isso, o melhor caminho seria a formação de agentes sobre diversidade sexual e de gênero.
Eles, então, fundaram a "LGTBIPOL: Agentes da Autoridade pela Diversidade". Desde então, sempre que há um pedido de ajuda para estreitar os laços entre a polícia e as comunidades, Begoña Gallego, de 49 anos, Elena Sánchez, 46, e Rufino Arco, 40, vestem sua armadura - uma camiseta com o nome da associação bordado nas cores da bandeira do orgulho LGBTQIA+ - e se deslocam voluntariamente a qualquer canto do país e às vezes até da Europa.
Apesar da burocracia do alto escalão, explica Elena, a meta da associação é garantir que, ao menos uma vez, cada um dos 156,4 mil policiais da Força de Segurança Espanhola (FSE) passe pela formação sobre diversidade - como acontece há três anos no curso preparatório de novos agentes.
Para atender as demandas da associação, os três policiais se organizam durante os dias de folga e férias de cada um.
Mas além das forças de segurança, eles levam a formação a conferências anti-bullying nas escolas, encontros com órgãos internacionais, como o FBI, e reuniões com partidos políticos - mas Begoña e Elena garantem que a associação é apartidária.
Em se tratando de crime de ódio contra LGBTQIA+, os homens são os principais agressores, mas também são a maioria entre as vítimas. Sendo assim, as policiais são poupadas? Para responder, Begoña faz questão de contar uma anedota. Na época em que a LGTBIPOL foi criada, ela fazia a segurança do Congresso dos Deputados, em Madri, quando foi abordada por outra policial, que ela descreve como sendo uma "lésbica de manual, [...] de cabelo curto, que anda igual caminhoneira".
Tentando recriar o tom acusatório da mulher, Begoña segue contando: "Estão me apontando, me perguntando se eu faço parte da sua associação". Segundo Begoña, algumas policiais se distanciaram dela com medo de "serem arrancadas do armário à força".
Hoje em dia, Elena percebe uma mutação desse comportamento. Se antes elas se afastavam, agora estão reforçando padrões de feminilidade para não sofrerem preconceitos. Ela acredita que tal mudança é uma consequência de discursos lgbtfóbicos que têm encontrado terreno fértil no país nos últimos anos.
No ano passado, os ataques relacionados à orientação sexual subiram 67,63% em comparação com 2021, ano que Begoña e Elena recordam como sendo "um verão horrivel". Na madrugada de 2021, Samuel Luiz, espanhol de origem brasileira de 24 anos, morreu após ser espancado por 13 homens que gritavam "maricón" - forma depreciativa de se referir aos gays.
Os vídeos com as cenas do crime, assim como as manifestações populares pedindo justiça, se espalharam pelo país.
Mesmo assim, a hipótese de homofobia foi descartada pela polícia e os agressores foram condenados por assassinato, cujo código penal da Espanha prevê pena entre 10 e 15 anos de prisão. O atestado policial teria sido fundamental para a promotoria atestar que se tratava de crime homofóbico, o que levaria à uma pena maior.
Foi graças a um documento elaborado pela LGTBIPOL com sugestões de conduta para casos como o de Samuel, que a Secretaria de Segurança mudou as normativas para investigar crimes dessa natureza.
Mas o estrago já estava feito. Begoña avalia que a tentativa de negar a motivação do crime fez com que a comunidade perdesse, de novo, a confiança na polícia.
Homossexualidade foi considerada crime na Espanha
Na Espanha, a história da comunidade LGBT+ é impossível de ser contada sem mencionar a violência do poder público. Entre as décadas de 1950 e 1970, era crime ser homossexual. De lá pra cá, o país avançou um bom trecho em matéria de diversidade, mas ainda falta muito por caminhar.
Dados recentes apontaram que 14% dos espanhóis entre 18 e 74 anos têm uma orientação sexual não-normativa, o que converte o país no segundo a nível mundial com o maior número da população adulta que se declara LGBTQIAP+, ficando atrás apenas do Brasil (15%).
Não à toa, a parada do orgulho em Madri é uma das maiores do mundo - já alcançou algumas vezes a marca de 3,5 milhões de pessoas, que é quase o mesmo número de habitantes da cidade.
A polícia também tem orgulho
A edição deste ano aconteceu no último dia 2 de julho e pretendeu ser uma resposta massiva ao "boom" homofóbico ecoado pelo partido de extrema direita VOX, que está em crescente ascensão política.
Para a segurança do evento, a polícia dobrou o número de agentes em relação ao ano passado - um policial para cada 268 pessoas.
Além disso, os 250 associados à LGTBIPOL foram proibidos de desfilar com uniformes policiais. O gesto demonstraria apoio e aproximação à comunidade.
"Muita gente pede para tirar foto; se emociona com nossa presença", comenta Begoña, que compareceu acompanhada da filha para ecoar o grito de guerra:
A polícia pela diversidade/ Contra o seu ódio, a nossa denúncia/ A polícia também tem Orgulho".
*
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