Liderada por mulheres, escola tem aula de arco e flecha: 'Forma guerreiros'
Em meio às lições de matemática, português e geografia, as crianças, jovens e adultos que estudam na Escola Indígena Maria Josefa Alice, na aldeia Serrote dos Campos, em Itacuruba, sertão de Pernambuco, cantam um toré e ouvem uma história tradicional resgatada e perpetuada pela pajé da tribo.
Elas fazem parte da etnia pankará, e a garantia do ensino das tradições religiosas e culturais na escola local é um meio usado pelas gestoras escolares para resgatar e passar para os mais jovens a tradição do seu povo.
O povo pankará quase perdeu o contato com os seus costumes quando foi forçado a viver disperso na área urbana depois de ter sido retirado de seu território, em 1988, devido à construção da Barragem Luíz Gonzaga. Por dez anos, viveram de acordo com a cultura urbana e viram surgir uma nova geração que não conhecia o território e as tradições.
Retorno à terra sagrada
Em 1997, retomaram ao território e resgataram a forma de vida indígena. A prioridade naquele momento foi implantar na região, onde vivem hoje 1.500 pessoas, uma escola indígena e resgatar história, cultura e tradição do povo para transmiti-los às novas gerações.
A ideia seria, uma vez tendo a escola construída e classificada na modalidade indígena, combinar os conteúdos que fazem parte da grade curricular convencional, definida pelo Ministério da Educação, com o ensino da cultura e tradição local.
Nessa empreitada, Maria Josefa dos Santos, 86 anos, a primeira pajé mulher da etnia pankará, cumpre um papel fundamental. É ela quem auxilia no ensinamento dos cânticos, dos costumes e tradições para os mais novos, evitando que o apagamento da história faça com que os pequenos indígenas esqueçam de onde vieram, quem são e para onde devem ir.
Vaquinha para construir escola
A primeira parte da missão, relembra Lucélia pankará, cacique da aldeia, foi conquistada através de uma vaquinha. "Cada membro da aldeia, juntou um pouco de dinheiro, comprou os materiais e assim erguemos o prédio da Escola Estadual Indígena Josefa Alice da Conceição, que atende estudantes do Ensino Infantil à Educação de Jovens e Adultos", conta ela a Ecoa.
Registrada na modalidade escola indígena, a instituição permite combinar os currículos e, em meio às aulas de matemática e português, estudantes entoam cânticos de louvor aos ancestrais, escutam histórias e conversam com os mestres. Na cultura pankará, mestres são os encantados incorporados pelas autoridades da aldeia.
"Criamos um projeto recente chamado Minha Família Conta História. Nele, levamos os estudantes para a casa de Dona Josefa para ouvir as histórias dos tempos em que ela era criança", explica a coordenadora pedagógica Anielly Cabral. A área externa da casa da pajé é um espaço grande e cercado de árvores, que vira uma sala de aula a céu aberto.
Histórias e arco e flecha
No local, as crianças sentam, escutam as lendas, conhecem as árvores e plantas tradicionais da caatinga que curam doenças. Às vezes, a própria Josefa vai à escola participar das aulas. Os estudantes também costumam ter aulas de história, cultura e religião na oca, uma casa de palha em formato circular construída no terreiro sagrado, local onde são realizados rituais religiosos.
Essas aulas os ajudam a entender quem são e a não terem vergonha de afirmarem que são indígenas. A gente está formando novos guerreiros para defender o povo pankará.
Anielly Cabral, coordenadora pedagógica
Os estudantes também põem a mão na massa para conhecer e produzir peças do tradicional artesanato pankará. Nessas aulas, aprendem a trabalhar com o caruá, um tipo de fibra que serve para confeccionar bolsas e chapéus, além de pulseiras, brincos e anéis.
"Os estudantes aprendem muito sobre a própria história, entendem por que os toantes são escritos da forma como são cantados. Eles gostam das aulas de campo, gostam de conversar com os mestres", afirma Anielly.
Eles têm, ainda, aulas de arco e flecha e sobre rituais sagrados, nos quais se dança o toré, uma manifestação sagrada e cultural com o objetivo de cultuar e agradecer aos ancestrais.
A primeira pajé mulher
Dona Josefa conta que começou a ser preparada para ser pajé dos pankarás quando tinha apenas 5 anos. Ela cultivava essa convicção, mesmo contrariando a tradição da etnia que, até então, nunca tinha tido uma pajé mulher. Na aldeia, o pajé é o guardião da tradição e dos conhecimentos medicinais, religiosos e culturais do território.
Ainda em fase de aprendizado, ela relembra que recebia a visita dos encantados [espíritos das pessoas mais antigas que viveram na aldeia], mas não sabia como lidar e, por isso, sofria muito.
Eu não sabia conversar com os encantados, então, corria para a mata. E também a gente tinha que se esconder dos brancos, que não aceitavam que a gente fizesse os nossos rituais.
Maria Josefa dos Santos, pajé pankará
Com o passar do tempo, Josefa foi adquirindo conhecimento da tradição espiritual, aprendendo as rezas, o modo de preparo dos banhos, o uso dos defumadores e outras práticas do sistema de saúde indígena. Mesmo sem patente, que é a autorização para exercer o trabalho como pajé, ela cuidava das pessoas da aldeia. "Eu passava remédios, chás, lambedor para gripe, para afinar o sangue, remédio para curar feridas e vermes."
Há cinco anos, em uma reunião espiritual, a sábia recebeu a patente de pajé do povo pankará Serrote dos Campos. Esse posto dá a ela ainda mais responsabilidade diante das novas gerações que têm um contato recente com a tradição e que vivem na era digital.
Hoje, por causa da idade, ela não pode participar dos rituais e eventos tradicionais da forma como gostaria, mas ensinar o que sabe para os mais novos é o que mais a deixa realizada. "Eu gosto de ensinar as coisas para os meninos, repassar o dom que aprendi."
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