Ela recuperou agrofloresta abandonada no Morro do Vidigal: 'É de todos'
Luiza Souto
Colaboração para Ecoa, no Rio de Janeiro (RJ)
06/09/2023 06h06
Ainda criança, Maria Gorete Silva, 46 anos, ajudava seu pai no roçado na cidade de Poço Branco, a cerca de 60 km de Natal (RN), nascendo ali sua paixão pela natureza. Nem poderia imaginar que anos depois, já morando no Rio de Janeiro, seria responsável pela volta das atividades do Parque Ecológico Sitiê.
Localizado no Morro do Vidigal, na zona sul da capital fluminense, o local é a primeira agrofloresta da cidade e estava fechado desde 2017, em estado de completo abandono. Maria Gorete virou gestora do parque e hoje trabalha para recuperá-lo. "Eu faço por amor", diz ela a Ecoa enquanto tira dois cacaus maduros do pé.
Com vista para o mar, o parque era antes um antigo sítio no meio da Mata Atlântica, invadido por construções de casas irregulares nos anos 1990. Em 2003, a prefeitura do Rio demoliu tudo, mas não levou embora o entulho, e os moradores passaram a fazer o local de lixão.
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Gorete morava bem ao lado, junto ao ex-companheiro, o músico e líder comunitário Mauro Quintanilha, 62 anos, nascido e criado na comunidade. No dia em que o casal se deparou com um cachorro morto na porta de casa, Quintanilha decidiu limpar tudo por conta própria.
16 toneladas de lixo
Mesmo considerado louco por sua família, chamou os amigos da comunidade e, com ajuda da associação de moradores, de garis comunitários dali e do Parque da Tijuca, retiraram 16 toneladas de lixo e entulho no decorrer de cinco anos.
Com a área limpa, já em 2010, Quintanilha conseguiu a doação de mudas de plantas ornamentais e frutíferas do Jardim Botânico e fez uma grande horta e um projeto paisagístico. Chamou ainda crianças para aprender a mexer com a terra.
Com o tempo, as frutas e verduras que brotavam passaram a ser doadas à comunidade. Trabalhando a vida inteira como cozinheira, Gorete era quem oferecia alimento aos voluntários que iam se somando para cuidar do espaço.
Projeto de reflorestamento
Durante a conferência climática Rio+20, realizada na cidade pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2012, o trabalho voluntário de Quintanilha e amigos tomou grandes proporções depois que o arquiteto Pedro Henrique de Christo, 40 anos, conheceu o local e se uniu ao grupo.
Formado em Design de Políticas Públicas pela Universidade de Harvard, nos EUA, Christo levou para o espaço arquitetos brasileiros e estrangeiros e, juntos, desenharam um projeto de reflorestamento e agricultura urbana, educação e design para a área.
Foi dele a ideia, por exemplo, de fazer um muro de contenção e uma escada com pneus para evitar deslizamentos de terra.O arquiteto levou ainda profissionais para oferecer cursos de educação ambiental, artes, programação e robótica para os moradores.
Todo esse movimento levou o Sitiê a ser reconhecido como a primeira agrofloresta do Rio de Janeiro pela Secretaria Municipal de Meio Ambiente em 2012. Hoje, pode-se ver no local dezenas de plantas e árvores novas na Mata Atlântica.
Prêmio internacional
Em 2015 veio ainda o reconhecimento internacional: o projeto desenhado por Christo recebeu um dos mais respeitados prêmios de arquitetura, urbanismo e design do mundo, o SEED Awards ("Design Social, Econômico e Ambiental", em tradução livre).
No ano seguinte, Quintanilha e Christo formularam o estatuto e a organização do local e de suas atividades, nascendo o Instituto Espaço Sitiê de Meio Ambiente, Artes e Tecnologia. A oficialização como Parque Sitiê veio em seguida, numa parceria com a prefeitura: o Instituto adotou uma área de 114 hectares de extensão.
O acordo, inspirado na gestão do parque americano Central Park, era cuidar do Sitiê sem influência ou verbas do poder público. Nove funcionários foram contratados. Christo explica a Ecoa que toda verba para manter o local vinha de seu escritório, de doações de famílias conhecidas, como Moreira Salles e Setubal, sócios do Itaú Unibanco, além da venda de produtos.
Abandono e degradação
Já separado de Gorete, Quintanilha mudou-se para São Paulo em 2017. Logo após as Olimpíadas de 2016, as UPPs (Unidades de Polícia Pacificadoras) começaram a ser descontinuadas, inclusive a do Vidigal, e uma guerra urbana instaurou-se num Rio mergulhado em crise financeira.
O Sitiê perdeu verbas e parcerias, e o lugar ficou vulnerável para se trabalhar. Gorete chegou a presenciar consumo de drogas e prostituição no entorno. A horta foi destruída e o lixo voltou a ser descartado na região.
Em 2020, Gorete descobriu um câncer na mama, já migrando para as axilas. Passou por cirurgia para retirada do tumor, e teve parte da mobilidade do braço reduzida. Foi quando ela entendeu que a natureza faria parte da sua cura.
Junto com o atual companheiro, Francisco de Assis, 49 anos, e do vizinho Anastácio de Souza, 67 anos, ela decidiu limpar toda a área e recomeçar.
Isso foi primordial para minha saúde e também para a de Anastácio, que era um alcoólatra.
Maria Gorete
Liderança feminina
Com a limpeza, pássaros como tucanos reapareceram, trazendo com eles mais sementes de frutos. Foi de um pássaro, inclusive, que Quintanilha pensou o nome do parque, que é a junção das palavras 'sítio' e 'Tiê'.
Moradores também pararam de levar lixo ao local e as visitas estão voltando aos poucos. Quem visita pode se servir dos frutos que brotam nas árvores do parque. "Isso aqui é de todos", diz Gorete.
Quintanilha afirma que esse ano voltará às atividades do Instituto, agora como Nave (Novo Acordo Verde no Brasil) Sitiê. Ele diz que a ideia é contratar mais pessoas para trabalhar no local.
Outra medida a ser tomada é fazer uma escada para ligar a parte de cima do parque até o asfalto, na Avenida Niemeyer, para melhorar o acesso.
A gente está retornando para trabalhar com a associação dos moradores e ter um diretório forte. E tudo por causa da Gorete, que moralizou o lugar e recuperou o ambiente.
Mauro Quintanilha, líder comunitário
Pedro de Christo diz que existe um respeito diferenciado em relação à liderança feminina em contexto de violência e alta vulnerabilidade. "Sem Gorete a gente não conseguiria atuar pela volta do Parque", diz ele que está em busca de editais para conseguir financiamento e levar renda para o local.
'O parque precisa de respeito'
Gorete pretende, ainda, inaugurar um restaurante no local ainda esse ano. O espaço, bem ao lado de sua casa, foi construído pelo companheiro com material coletado dos entulhos. "Quero desconstruir o que as pessoas oferecem, e vender uma coisa saudável."
Quem quiser ajudar nessa empreitada, é só chegar com vontade de colocar a mão na massa: "O parque não precisa de dinheiro, mas de respeito. E de doação de materiais como um corrimão ou uma vassoura, para manter tudo limpo", aponta ela, que vive de auxílio-doença e ajuda de suas duas filhas.
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