Nem cachorro nem graxaim: RS relata cruzamento inédito das duas espécies
Amanda Kuhn
Colaboração para Ecoa
10/09/2023 04h16
Um 'cão' com aparência incomum é resgatado após um atropelamento, no município de Vacaria, no Rio Grande do Sul.
A fêmea tinha "olhos semelhantes aos de um cachorro e corpo similar ao graxaim-do-campo", um mamífero canídeo selvagem típico do bioma Pampa, que come pequenos roedores e aves.
Com características diferentes dos graxains encontrados na região, o animal foi encaminhado para o Hospital de Clínicas Veterinárias da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e, inicialmente, tratado como um cachorro.
Porém, após alguns dias, os veterinários perceberam que o mamífero tinha um comportamento asselvajado, não parecia ser um "cão doméstico" nem queria comer os alimentos que os cachorros normalmente consomem. Então, decidiram dar pequenos ratinhos ao bicho, que comeu tudo na mesma hora. Após isso, a fêmea foi transferida ao setor que atende animais silvestres.
"Ela era um animal muito incrível, era realmente uma mistura. Não era nem tão dócil quanto um cachorro nem tão selvagem quanto um graxaim", relembra Flávia Ferrari, médica veterinária ex-residente do Hospital de Clínicas Veterinárias da UFRGS, responsável pelo tratamento durante o período em que a fêmea esteve internada no local.
O caso ocorreu em 2021 e, após totalmente recuperada, a fêmea foi estudada por cientistas. As descobertas, que mostramos mais abaixo, foram publicadas em agosto deste ano, na revista Animals.
Ao sair do hospital, o animal incomum foi transferido para o Mantenedouro São Braz, em Santa Maria (RS), por determinação da Secretaria do Meio Ambiente do e Infraestrutura (Sema), onde permaneceu até 2023, quando faleceu. A causa da morte não foi divulgada.
Caso raro e inédito na América do Sul
Os pesquisadores da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e da UFPel (Universidade Federal de Pelotas) chegaram às seguintes conclusões em seu estudo, publicado na Animals:
O bicho era fruto de um cruzamento raro entre duas espécies de diferentes gêneros: um cachorro doméstico macho e uma fêmea graxaim-do-campo.
Esse foi o primeiro caso de hibridação entre um cão doméstico (Canis lupus familiaris) e um canídeo silvestre (Lycalopex gymnocercus) registrado na América do Sul, segundo os cientistas Bruna Elenara Szynwelski, Rafael Kretschmer, Cristina Araujo Matzenbacher, Flávia Ferrari, Marcelo Meller Alievi e Thales Renato Ochotorena de Freitas.
Casos de cruzamentos entre canídeos silvestres e cães domésticos já foram documentados na América do Norte e na Europa.
"Essa descoberta mostra que, apesar dessas espécies terem divergido há cerca de 6,7 milhões de anos e pertencerem a diferentes gêneros, elas ainda podem produzir híbridos viáveis", diz o texto do estudo.
Cruzamento gera preocupação ambiental
A relação entre um animal selvagem e um animal doméstico é preocupante, pois mostra que essas espécies tiveram um contato tão próximo e íntimo que possibilitou o cruzamento, explica Ferrari. Essa aproximação tem potencial para causar diversos efeitos na natureza.
Um dos principais impactos é a possibilidade da transmissão de doenças de uma espécie para outra, analisa Rafael Kretschmer, um dos autores da pesquisa. "Além da possibilidade de ocorrer uma introgressão, que é um evento em que acontece a transferência de genes de uma espécie para outra", esclarece.
Essa introgressão poderia interromper a adaptação dos animais selvagens ao ambiente em que vivem, mudando hábitos desses bichos e até colocando em risco a espécie.
Os cientistas afirmam que serão necessários futuros estudos para investigar a frequência de hibridação, a possibilidade de introgressão genética de genes caninos nas populações de graxaim-do-campo e os impactos deste evento sobre fatores genéticos, comportamentais e ecológicos das populações de graxaim-do-campo.