Cego, ele ensinou Gianecchini a se autodescrever; saiba a importância disso
"Eu sou um homem branco de cabelos castanhos e olhos verdes. Estou sentado em uma cadeira de madeira e, atrás de mim, há uma parede branca", diz o influencer Fernando Campos.
À sua frente, ele segue descrevendo, há uma mesa em que está apoiado o celular para dar a entrevista para essa reportagem, via chamada de vídeo. A descrição é importante porque ajuda as pessoas cegas a terem uma imagem mental da cena e das pessoas que seja condizente com a realidade, explica Fernando.
É só depois de 30 minutos de conversa que eu entendo que deveria fazer o mesmo. Na outra janela da reunião, estou usando uma camiseta com uma estampa do time de futebol para o qual eu torço, digo para Fernando. Meu cabelo é castanho, cacheado e comprido. Tenho olhos castanho escuros, uma pinta próxima a boca e estou no escritório montado do quarto do meu filho de 6 anos —por isso, é possível ver alguns brinquedos de pelúcia. Fernando aponta para seu próprio rosto para que eu confirme a localização da pinta e agradece a minha fala.
Meu delay em perceber a importância da autodescrição é um dos motivos da campanha lançada por Fernando em julho.
A ideia é que celebridades, influenciadores e outras pessoas relevantes nas redes sociais se descrevam em vídeos e facilitem a construção da imagem de pessoas cegas, como Fernando.
A partir dos detalhes que eu forneci, ficou mais fácil para ele ilustrar minha aparência em sua imaginação e, assim, saber um pouco mais sobre quem estava falando com ele.
O projeto de autodescrição basicamente consiste em trazer para o grande público artistas nacionais de relevância relatando suas características. É rápido, não demora mais de 10 segundos e faz toda a diferença. Fernando Campos, jornalista e influencer
Entre quem já topou o desafio está Jessi Alves, Barbara Borges, Ivan Baron. Um dos vídeos mostra Fernando ensinando Reynaldo Gianecchini a se autodescrever. "Me disseram quer ele era o ator mais gato do país e eu fui conferir", legendou ele, fazendo piada.
Assunto sério, mas com humor
Só no Instagram, Fernando tem mais de 300 mil seguidores. Seus vídeos bem-humorados explicam o que não se deve fazer ou falar para pessoas cegas. "Já estou falando de um assunto sério, então que seja de uma maneira leve e faça as pessoas rirem. Eu acho que eu produzo o que eu gosto de consumir sabe?".
Graduado em jornalismo, Fernando perdeu a visão ainda bebê, após ser diagnosticado com câncer na retina. Seus globos oculares foram retirados após a quimioterapia e ele usa próteses durante quase a vida toda.
"Sempre gostei de me comunicar e de contar histórias, tinha uma veia artística grande. Queria fazer teatro quando era mais novo para poder ir para a televisão. Mas, apesar da minha família me apoiar em tudo, tinham um temor que eu seguisse essa carreira porque é muito difícil viver de arte. E fui para o jornalismo", conta. A tal veia artística está contemplada no humor de seus vídeos, que tem interpretação na construção de personagens.
Casamento e seguidores
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Quero receberFernando hoje mora em São Paulo com o marido, Bruno, de 34 anos, que é advogado e o ajuda em seus vídeos. "Eu sei postar, mas posso estragar a foto com o enquadramento errado, se cortar a cabeça da pessoa, por exemplo. Por isso, preciso de ajuda", diz.
Ele criou seu canal no YouTube há alguns anos para entrevistar pessoas e divulgar suas palestras. Essa troca era o mais interessante para ele, que sempre se viu como um contador de histórias. Durante a pandemia, viu o movimento do Instagram crescer. O maior boom foi quando participou de um quadro no programa de Luciano Huck, em janeiro de 2022, mostrando sua trajetória. Saiu de 20 mil seguidores para 154 mil, na época.
"TV aberta é muito louco. Os acessos explodiram. Eu nunca fui considerado tímido, mas tive que passar por algumas transformações para me entender influenciador. Estou aprendendo ainda - nas redes sociais, quando a gente pensa que está dominando algo, em pouco tempo descobre que não é mais daquele jeito que funciona", diz sobre as mudanças rápidas do algoritmo e da tecnologia.
Bandeira pesada
E confessa que há momentos em que cansa um pouco da bandeira e de falar sobre sua causa o tempo todo. "Sim, sou cego. Mas sou jornalista, quero entrevistar pessoas. Quero falar sobre arte, cultura e música que eu amo. Posso fazer análises bem coerentes sobre esses assuntos", diz lembrando da importância de Pequena Lo.
"Ela é um farol gigantesco que abriu diversas portas. É genial ver um ser humano como ela que não se isenta de falar e vê muito além. Quero que as pessoas também conheçam, além do Fernando cego, o Fernando ser humano que adora, por exemplo, um trio elétrico", ele diz rindo.O humor de seus vídeos em que, sem timidez, tira a camisa e até dança, é motivo de orgulho. "Tem momentos que eu penso: ai, como eu fui genial", ri alto.
É o que faz também quando eu aviso que o celular caiu do suporte. "Se você não avisasse, eu ficaria aqui achando que você está me vendo e você passaria uma hora vendo minha geladeira", ele gargalha e completa: "Sabe que isso que acabou de acontecer é um conteúdo, né?"
Não somos só pessoas com deficiência, somos várias outras coisas. Fernando Campos, jornalista e influencer
'Casei e mudei'
Criativo desde a infância, ele garante que essa mania de ver conteúdo em tudo é um legado de sua mãe, que inventava as histórias que o filho pedia. Era um tal de misturar o Batman com a Turma da Mônica...
Após um intercâmbio de seis meses na Inglaterra, escreveu seu primeiro livro: 'Enxergando além do Atlântico'. O plano é lançar também um livro infantil até o fim de 2023 ou começo de 2024. "Desde que eu tive meus sobrinhos, tenho uma preocupação muito grande em formá-los como pessoas acolhedoras e que respeitem a diversidade. Para isso, comecei a contar histórias para eles com protagonistas PCD".
Em 2023, Fernando se mudou para São Paulo por motivos de trabalho. Na capital paulistana, sente falta da família e do litoral, mas lida com as novidades do casamento em uma cidade tão grande. Ele conta que adora sair de casa, passear.
Tem semana muito cheia de compromissos em que sinto vontade de descansar, mas mesmo nesses dias, gosto de sair, de ver gente, de encontrar a galera, sabe? Fernando Campos, jornalista e influencer
Em casa, ele e Bruno gostam de tomar cerveja enquanto escutam música. Fernando gosta mais de ler, Bruno curte ver séries e, assim, vão preservando a individualidade. E, enquanto isso, gravando muitos vídeos que explicam, por exemplo, como uma pessoa cega sabe se é dia ou noite, ou se sente atraída por alguém. "Eu casei e mudei, literalmente. Mas, juntos, estamos nos adaptando a tudo para trabalhar e curtir cada vez mais."
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