O que leva uma pessoa a ser presa por um crime que não cometeu?
Foram tempos muito difíceis para Igor Barcellos. Ele quase não comia e muitas vezes até água faltava. Diariamente, se deparava com banhos gelados, e o minúsculo espaço que compartilhava para dormir era tão congestionado que mal dava para se movimentar.
O contato com a família era raro, agravando ainda mais seu sofrimento. Essa situação angustiante perdurou por quase três anos
"Quem passa pela cadeia não esquece", conta o jovem que hoje tem 26 anos e foi preso com apenas 19.
Igor nasceu e ainda vive na periferia de Guarulhos, região metropolitana de São Paulo. O paulista foi condenado por um roubo e tentativa de latrocínio.
Na madrugada de sábado para domingo do dia 2 de outubro de 2016, ele seguiu para a capital para curtir duas festas.
Acompanhado de um amigo e de seu irmão, Igor saiu da segunda festa por volta das 4h40 da manhã em uma moto, enquanto os outros dois seguiam em outra.
O grupo foi abordado por um veículo na Avenida Sezefredo Fagundes, Zona Norte de São Paulo. Após ser ameaçado pelo motorista, Igor sentiu no tornozelo esquerdo a dor do tiro que o atingiu.
O fato, já bastante trágico, se tornou ainda pior para ele uma vez que a consequência foi sua própria prisão.
Por meio de uma fotografia tirada por um policial enquanto Igor estava na maca do Hospital São Luiz Gonzaga, no bairro de Jaçanã, uma vítima de roubo o reconheceu como o autor do crime.
"Os policiais foram alertados pelo rádio da polícia militar da minha entrada com tiro no hospital. Como eles estavam procurando todo mundo que tinha entrado baleado, foram até lá. Saí do hospital preso", conta Igor.
Desde que saí da prisão, tenho momentos de muita dificuldade, a marca do ex-detento ainda permanece. Até hoje tenho medo de sair de casa para fazer coisas muito longe, fico aflito de ser confundido de novo. Além de ter dificuldades financeiras por não ter conseguido um trabalho fixo desde que deixei o presídio. Igor Barcellos
O projeto que salvou Igor da prisão
Apesar de inocente, Igor Barcellos foi condenado a 15 anos e seis meses de reclusão. Para ajudá-lo, a família se uniu para conseguir provas de que o jovem não tinha cometido os crimes. Foi então que a advogada de Igor decidiu procurar a ajuda do Innocence Project Brasil.
A associação sem fins lucrativos foi criada em 2016, com o objetivo de reverter casos de prisões injustas.
Seu nome em inglês não é à toa; a sede do Innocence Project é nos Estados Unidos. A responsável por trazer a organização para o país foi a advogada Dora Cavalcanti, que hoje atua como diretora do projeto.
"Meu primeiro contato com o Innocence Project foi em 2008, mas foi só em 2013 que atuei um ano como advogada visitante na sede da Califórnia", conta Cavalcanti.
Lá, a advogada se candidatou para uma vaga para fomentar o projeto pela América Latina.
Assim que voltou ao Brasil, convidou outros dois advogados, que hoje também são diretores do Innocence Project Brasil, Flávia Rahal e Rafael Tucherman, para fixar uma sede da associação no país.
E esse é o motivo de ser do projeto, discutir o que pode levar uma pessoa a ser condenada por um crime que não cometeu, o que os casos têm em comum e por que esse é um fenômeno que se repete inúmeras vezes. Dora Cavalcanti, advogada e diretora do Innocence Project Brasil
Uma foto só não diz quem é culpado
No Brasil, é impossível saber quantas pessoas entre os quase um milhão de presos foram condenadas apesar de serem inocentes. Não há dados compilados nacionalmente, mas há alguns levantamentos que ajudam a entender como isso acontece no país.
O grande vilão responsável por boa parte das condenações de inocentes é a prova de reconhecimento.
Assim como aconteceu com Igor Barcellos, muitas pessoas têm sido presas por serem identificadas como criminosas por vítimas diante de policiais e da Justiça.
Contudo, um levantamento da Defensoria Pública do Rio de Janeiro feito em setembro de 2020 detectou 58 processos envolvendo reconhecimentos fotográficos errados.
Em 86% desses casos houve o decreto de prisão preventiva, com período de privação de liberdade que variou de cinco dias a três anos.
"No Brasil, cada delegacia não só tem seu próprio álbum de suspeitos —com imagens de pessoas que supostamente já foram catalogadas pela delegacia por terem outras passagens— como também usa imagens de celular da equipe de investigação em redes sociais e em grupos de bairro que compartilham fotos de suspeitos", explica Cavalcanti.
Outro problema é o fato do reconhecimento ser usado como única prova para condenar alguém.
Isso porque há uma série de razões que podem levar a vítima a fazer um reconhecimento errado, como a adrenalina e o susto que ela viveu após o crime, além das "falsas memórias", que não são necessariamente mentiras, mas que são memórias induzidas e criadas por algum fator externo.
"Além disso, as vítimas não são orientadas sobre o fato de que, mesmo que elas não façam o reconhecimento, o processo vai avançar, a delegacia vai continuar buscando o culpado. Fica um sentimento de ou reconhece ou não vai dar em nada", diz a advogada Dora Cavalcanti.
É importante que o Ministério Público, que é quem tem o poder de fazer uma ação penal, passe a exigir um padrão mais alto de prova, não só um reconhecimento. Que se vá a campo, que se faça um trabalho de mapeamento telefônico, de câmeras, que se tome depoimentos, que se cheque a versão do acusado etc. Dora Cavalcanti, advogada
Qual é a imagem de um suspeito?
O pouco que se sabe sobre os condenados inocentes que estão nos 1381 presídios brasileiros é suficiente para traçar um perfil de quem são essas pessoas, uma vez que são o reflexo de todo o sistema carcerário do país.
São jovens, negros, periféricos, com baixa escolaridade e sem emprego formal.
Levantamento da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, dessa vez em âmbito nacional, identificou que em 83% dos casos de reconhecimento equivocado citados no estudo, as pessoas apontadas eram negras.
Além disso, de acordo com dados do Innocence Project, os inocentes presos respondem em 92,9% dos casos a crimes contra o patrimônio.
Impacto em todo o Brasil
Desde que surgiu, o Innocence Project Brasil já recebeu quase 6.000 casos para análise. O que é inviável para uma equipe tão enxuta. Além dos três diretores, a organização conta com mais três profissionais fixos e com o trabalho de voluntários.
Cada pessoa que a gente consegue atender, desde o diagnóstico de inocência até o fim, tem esse poder quase mágico de reafirmar para a advogada criminalista a razão de ser da sua profissão. Dora Cavalcanti, diretora do Innocence Project Brasil
A análise de cada pedido de ajuda é extremamente rigorosa e envolve saber se a pessoa já esgotou todos os recursos, se foi condenada a uma pena elevada e ainda tem muitos anos para cumprir e se ela possui pelo menos uma prova de inocência que ainda não foi levada ao processo.
Além de Igor, outras cinco pessoas foram libertadas devido a ações do Innocence Project no país.
Mas há outra instância de atuação do projeto que tem atingido ainda mais pessoas.
Por meio de um pedido feito pela organização em parceria com um grupo de estudos da USP e o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) —ONG também fundada por Dora Cavalcanti— ao Presidente do Conselho Nacional de Justiça, em 2018, foi criado um grupo de trabalho a fim de produzir um estudo sobre o tema do reconhecimento no Brasil.
O relatório não só apresenta os problemas que o reconhecimento pode gerar, como propõem ações e leis que possam melhorar sua aplicação na polícia e na Justiça.
Segundo a diretora do Innocence Project Brasil, de 2021 até agora, o Superior Tribunal de Justiça, com base na jurisprudência conseguida pelo grupo de estudo, reverteu mais de 300 casos de reconhecimentos errados.
"Eu tenho muito orgulho de falar sobre esse trabalho. A gente já está fazendo um curso com as polícias aqui em São Paulo, curso superdemandado, já foi feita a formação com defensores públicos e queremos dialogar com juízes de todo o Brasil", conta Cavalcanti.
A gente tem que ser otimista e acreditar que ninguém deseja mandar uma pessoa inocente para cadeia, e que isso acontece como resultado desse misto de desconhecimento e acomodação. Dora Cavalcanti, advogada e diretora do Innocence Project Brasil
De acordo com Rafael Tucherman, o "dinheiro é o grande gargalo de crescimento" do Innocence Project Brasil. O projeto conta com doações dos próprios diretores e de pessoas físicas.
No entanto, de acordo com ele, a organização poderia atender mais pessoas se contasse com doações permanentes e significativas.
Se você deseja ajudar, pode fazer uma doação para:
Banco Itaú
Agência: 0350
Conta Corrente: 19.165-6
CNPJ: 26.733.385/0001-90
Ou usando a chave PIX: doe@innocencebrasil.org