O que é vodu? Religião foi estopim para maior revolução negra da história
Colaboração para o UOL, em São Paulo (SP)
26/10/2023 04h16
Quando você ouve falar em "vodu", no que você pensa? Talvez aquela imagem do boneco sendo espetado por alfinetes, como nos filmes e desenhos, seja a primeira coisa que vem a cabeça. Até hoje, a prática enfrenta muito preconceito por causa de ideias que foram cultivadas durantes os anos.
Mas a verdade é que o vodu (que também é chamado de vudu, voodoo, vodoun ou vodum) é uma religião — e uma das mais populares no oeste do continente africano, especialmente no Benin, país considerado o "berço" dessa prática. O vodu é a religião oficial do país desde 1989.
Em Origens, um chef brasileiro no Benin, João Diamante viu de perto uma das celebrações da religião, na cidade de Cotonu. Por lá, ele descobriu como o acarajé, lá chamado de akará, tem uma forte relação com o país e o candomblé no Brasil.
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O que é vodu?
Em primeiro lugar, é válido dizer que as práticas religiosas do vodu não têm relação com a "demonização" criada em torno desse tipo de fé. Nem "rituais satânicos" com bonecos alfinetados, muito menos com bruxaria. A principal conexão com o sagrado no vodu é o poder da natureza e seus elementos, como a água e a terra, por exemplo.
Como a historiadora Suzanne Preston Blier explica no livro "Vodu Africano: Arte, Psicologia e Poder" (em tradução livre para o português), vodu significa "a ideia de ficar perto de uma fonte de água, não se apressar na vida, ter tempo para alcançar a tranquilidade".
Assim como em outras religiões, no vodu existe um deus supremo que recebe diferentes nomes em diferentes lugares. Para se comunicar com ele, os fiéis precisam contar com outros espíritos que são incorporados em celebrações religiosas. Através das danças, os praticantes prestam homenagem a eles.
Como começou o vodu?
O vodu começa no reino de Daomé, que entre os anos 1600 e 1904 se manteve no domínio de boa parte da região que hoje é a República do Benin. As celebrações eram realizadas, por exemplo, em centros comerciais escravistas, onde hoje existem memoriais.
No vodu, Mawu ou Mahu, uma mãe mais velha, mulher gentil, equivale a um orixá no candomblé. Os seus filhos são os outros deuses da religião e representados pela natureza ou ainda deuses que representam grupos étnicos específicos através dos espíritos.
Na origem do vodu há um respeito e homenagem imensa aos africanos escravizados. Isto porque a religião acredita que os mortos permanecem intercedendo pelos vivos através de suas famílias.
Em janeiro, anualmente, um grande festival do vodu reúne religiosos de várias partes do mundo no Benin.
O sincretismo para 'aliviar' o preconceito
Essa fé no vodu influencia não só nos valores e princípios, mas em todo o contexto sociocultural do país, assim como o cristianismo é influente no Brasil. Além do Benin, Nigéria a Gana também têm o vodu como principal religião.
Em outros países, o vodu também se disseminou, mas se "adaptou" às diferentes realidades territoriais com o passar do tempo. No Haiti, por exemplo, há o vodu haitiano, em Cuba, a santeria, e no Brasil, o candomblé jeje.
Todas elas passaram por algum nível de mistura com religiões cristãs para serem menos hostilizadas, uma tentativa de ser mais "aceita". Também é comum no continente africano, por exemplo, que uma pessoa tenha mais de uma religião além do vodu — geralmente é o catolicismo.
No entanto, não é possível dizer que esse esforço resultou em algum nível de aceitação, como observa Ana Caroline Amorim Oliveira, professora da pós-graduação em cultura e sociedade da UFMA (Universidade Federal do Maranhão).
"Esse sincretismo católico-vodu foi extremamente violento, foi um processo de etnocídio, um apagamento cultural e religioso do seu entendimento de mundo, da sua língua — mas também tem essa dimensão de ser uma estratégia de continuidade [da religião]", destaca Oliveira, a partir do estudo "Os símbolos sociais do vodu haitiano e seus significados".
Vodu no Haiti: um capítulo à parte
No Haiti, o vodu nasceu de escravizados que chegavam às Américas e o misturaram com o catolicismo. Porém, a professora de história da Universidade Federal Fluminense (UFF) Ynaê Lopes dos Santos, também autora da obra "História da África e do Brasil Afrodescendente", fala de ações mais incisivas que muitas vezes dificultava a prática religiosa.
"Os rituais, para eles acontecerem, precisam de espaço, de tempo, então o que acontecia era que o ritmo de trabalho imposto pelo sistema plantation [de cana-de-açúcar] francês inviabilizava que isso acontecesse dentro dessa lógica de trabalho", explica.
O medo era a de que o vodu fosse um canal para pessoas negras, libertas ou escravizadas, se rebelar contra a França, que colonizou o Haiti a partir de 1625.
Em 1788, a própria França realizou um censo que constatou que 93% das pessoas que viviam no Haiti, chamado de São Domingos à época, eram escravizadas. A violência contra essas pessoas era tanta que muitas rebeliões e fugas para quilombos aconteceram no decorrer da História.
A maior delas foi a Revolução Haitiana de 1791. E tudo começou com uma cerimônia de vodu no norte do país, liderada pelo sacerdote Dutty Boukman.
Durante a celebração religiosa, Boukman levantou a voz para convocar pessoas negras para a lutar por liberdade. Em poucos dias, mais de 100 mil pessoas se uniram ao levante, que invadia fazendas para libertar escravizados. A revolta, então, não parou de ganhar adeptos.
Pressionada, a França se viu obrigada a começar a discutir sobre a independência do Haiti e o fim da escravidão no país — que foi abolida em 1793, se tornando o primeiro país a decretar o fim oficial da escravidão.
O vodu, no entanto, continuou sendo perseguido. A igreja católica exigia que a religião oficial do país fosse o catolicismo, ao mesmo passo que, entre de 1835 a 1987, o governo do Haiti proibiu os rituais do vodu. No entanto, como explica a historiadora Kate Ramsey no livro "Os espíritos e a lei: o vodu e o poder no Haiti", essas leis pouco funcionaram na prática.
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Acarajé ou akará? Só tem feijoada no Brasil? E quem são os "brasileiros-africanos" do Benin? Pela primeira vez na África, o chef João Diamante mergulha entre passado, presente e futuro da história e do sabor brasileiro. Assista agora "Origens - Um chef brasileiro no Benin":