Mãe de santo ajudou a redescobrir porto soterrado pela monarquia no RJ
Quem passa pela zona portuária do Rio de Janeiro pode ver de perto o único vestígio material por onde chegaram os africanos escravizados no Brasil, o Cais do Valongo. Por lá, passaram cerca de um milhão de escravizados entre os séculos 16 e 19.
Mas nem sempre foi possível vê-lo. Em 1843, o Cais do Valongo foi aterrado pelo Império e só foi redescoberto durante as obras do Porto Maravilha, em 2011. Lá foram encontrados diversos objetos arqueológicos, o que deu início a um amplo processo de resgate histórico na região.
A identificação das peças, muitas delas de matriz africana, contou com a colaboração da escritora e gestora de cultura no Centro Cultural Pequena África, Celina Maria Rodrigues, 59, mais conhecida como Mãe Celina.
Fiquei quase um ano e meio reconhecendo os objetos dos povos africanos, de realezas, de terreiros, coisas do tempo dos escravos. Encontramos muitos búzios, ossadas, ferragens para montar orixás, Exus e objetos de terreiros que são usados até hoje
Mãe Celina
"É o lugar que me representa"
Nascida e criada em São Gonçalo, região metropolitana do Rio, Mãe Celina é iniciada no candomblé desde 1988. Em 2006, morando na região portuária da cidade, a poucos metros do Cais do Valongo, assumiu o cargo de gestora de cultura e passou a estudar a história do local.
Quando os arqueólogos da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) passaram a trabalhar por lá, abrindo um pedaço de terreno de quatro mil metros quadrados, Mãe Celina conta que eles queriam que o povo negro também participasse das descobertas e escavações, e a convidaram. "Fui apresentada à professora Tânia Andrade Lima e trabalhamos juntas na descoberta dos objetos", exlica.
"Foi um carinho de Xangô na minha vida me colocar ali com a equipe de geólogos e arqueólogos. Foi um combo de profissionais sérios redescobrindo e resgatando nossas memórias, nossa cultura ancestral, nossa história soterrada"
Mãe Celina
Em 2012 a Prefeitura do Rio de Janeiro acatou a sugestão de organizações dos movimentos negros que acompanhavam a recuperação dos objetos e transformou o espaço em um monumento preservado e aberto à visitação pública.
O Cais também passou a integrar o Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana e, em 2017, recebeu o título de Patrimônio Histórico da Humanidade pela Unesco.
Guardiã de uma nova memória
Local emblemático da história negra brasileira, o Cais do Valongo também foi uma das regiões visitadas pelo chef João Diamante no documentário Origens, um chef brasileiro no Benin, que retrata a sua experiência inédita pelo país africano situado na região de onde centenas de milhares de pessoas foram raptadas para serem escravizadas nas Américas.
Ao chef, Mãe Celina explica como os trabalhos de revitalização do espaço também têm proporcionado ressignificar sua imagem de sofrimento. "Foram várias viagens à Europa e ao continente africano para falar desse equipamento tão importante", diz.
Newsletter
NÓS NEGROS
O Núcleo de Diversidade do UOL traz reportagens e análises relacionadas à população negra. Toda terça.
Quero receberHoje, falando de Cais do Valongo, a gente transformou esta dor em possibilidades, de trabalho, de ganho, de alegrias, de afeto, de harmonia. Possibilidade de coisas positivas.
Mãe Celina
Com a ampla discussão histórica e representatividade do local, em julho deste ano, o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), do Ministério da Cultura, iniciou uma sequência de obras para melhorias no espaço.
"Digo que sou uma Celina antes e depois do Cais do Valongo. Se é para recontar nossa história, tenho prazer de contar com maestria, carinho afeto e principalmente com muito respeito. É a possibilidade de trazer para essa terra que a gente pisa, coisas boas, bacanas e de crescimento quando se fala dessa memória ancestral. Da redescoberta até aqui, tenho tido várias redescobertas também em mim, quanto mulher, mãe de santo, profissional. Evoluí bastante e a minha ancestralidade me leva para esse lugar."
Mãe Celina
*
Acarajé ou akará? Só tem feijoada no Brasil? E quem são os "brasileiros-africanos" do Benin? Pela primeira vez na África, o chef João Diamante mergulha entre passado, presente e futuro da história e do sabor brasileiro. Assista agora "Origens - Um chef brasileiro no Benin":
Deixe seu comentário